Sempre online e de "olho vivo", carro autônomo pode invadir privacidade

Qual é a sensação de se andar dentro de um carro autônomo? UOL Carros foi passageiro de um dos protótipos da Volvo na Suécia e pode afirmar: é algo muito diferente da experiência atual de se guiar qualquer carro, mesmo aqueles com avançados recursos de controle de cruzeiro e freios automáticos. Ao mesmo tempo, por mais contraditório que seja, tudo parece familiar.
Há ainda um fato que abre uma nova dimensão no campo automotivo: quando for um produto real, o carro autônomo será um veículo extremamente tecnológico, ou seja, trará uma série de recursos eletrônicos de conforto e de segurança, bem como de comunicação, conectados a centrais de operação de trânsito, bem como a celulares e à rede mundial de computadores.
Nesta série especial sobre carros que andam sozinhos, você já soube que o ano de 2020 é crucial para a chegada dos autônomos e viu que a Suécia já colocou seus primeiros conceitos para rodar no trânsito urbano, adotando a tecnologia como ponto de honra de empresas, universidade e governo. Agora, a terceira reportagem mostrará como a tecnologia aparentemente benéfica tem também seu lado polêmico: carros autônomos podem representar um risco à privacidade dos ocupantes por estarem sempre conectados?
UM PASSEIO NO MUNDO NOVO
Após observar o primeiro protótipo da Volvo, um V40 adaptado, estacionar sozinho ao comando do telefone celular, UOL Carros foi convidado a rodar 50 quilômetros a bordo de outro carro autônomo de teste, desta vez um sedã S60 também modificado. Além do adesivo do programa Drive Me (que pode ser lido como “me leve”), havia antenas extras de comunicação, sensores adicionais e portas conectoras na cabine.
Não fomos autorizados a “dirigir” o S60 por questões de segurança inerentes ao teste: por ser um laboratório sobre rodas, o carro tem custo incalculável; além disso, o sistema autônomo atual ainda é sensível demais e se desarma com qualquer toque no volante ou pedais.
No revezamento entre o banco do carona e o assento traseiro, a sensação foi a de ser… um passageiro comum, de um carro guiado por uma pessoa qualquer. A diferença, fundamental, é que a pessoa ao volante — o engenheiro Mattias Brännström — também não estava dirigindo o carro. Ao toque de um botão, o sistema passou a comandar tudo e se comportou de modo impecável.
Em momento algum houve movimento brusco na direção, aceleração ou frenagem. O carro manteve a trajetória na pista do rodoanel de Gotemburgo e rodou sempre no limite de velocidade de 70 km/h, nunca acima, nunca muito abaixo. Só não mudou de faixas, nem fez retornos ou realizou ultrapassagens, já que o protótipo ainda não tem a tecnologia necessária para isso.
“O sistema está programado para dirigir dentro dos limites legais de velocidade”, afirma Brännström. Mesmo que o dono queira, o carro autônomo jamais vai infringir a lei, nem se aproximará perigosamente de um cruzamento, de uma calçada ou de outro motorista. “O único senão do protótipo é que ainda não conseguimos fazer uma leitura correta de todos os parâmetros em velocidades acima dos 100 km/h”, admite o engenheiro. Mesmo assim, quando isso for resolvido é pouco provável que o carro autônomo circule acima dos 120 km/h.
“Se você quer um comportamento esportivo ou andar acima do limite, deve assumir o volante e tentar você mesmo”, nos conta Henrik Lind, especialista em segurança ativa da marca. “Ainda assim, o autônomo vai controlar todos os aspectos do caminho e chegará antes”, provoca.
No futuro, o tráfego de carros autônomos deverá funcionar como se fosse um trem onde cada veículo é um vagão. Quem usa metrô sabe como é: você entra, abre uma revista, conversa com um amigo ou dorme, enquanto a composição segue o fluxo constante, na maior velocidade permitida e com paradas eventuais — no caso do carro, apenas em semáforos ou cruzamentos.
SORRIA, VOCÊ SERÁ FILMADO
Quem se lembra de filmes como “Minority Report” ou “Eu, Robô” sabe que no conflito dos protagonistas com os carros autônomos da ficção, sempre havia uma transição brusca, com perda de controle parcial ou total. Mas e na vida real, como será sair do autônomo para o manual?
A Volvo prevê uma transição suave, ao toque de um botão no painel, mas afirma que é preciso ter “mecanismos redundantes de segurança”. O principal deles é uma câmera extremamente sensível, que monitora o comportamento do motorista e seu grau de atenção. Quando estiver pronta, abrirá uma série de possibilidades. E de questionamentos.
“A câmera capta o olhar do condutor a todo instante e também consegue monitorar seu nível de atenção e estresse, para definir se ele pode assumir o controle ou não”, explica Lind, falando sobre o protótipo que sozinho ainda custa absurdos 200 mil euros.
Uma olhada lateral (como para checar o retrovisor) não muda o gráfico que indica as medições do aparelho. Mas se o condutor desviar os olhos da direção da pista por muito tempo — e falamos aqui de um tempo abaixo de 2 segundos –, o gráfico entra no vermelho e dispara a ação autônoma. Vale para quem se abaixou para pegar um caneta no assoalho ou para quem está piscando demais, sonolento.
(Nenhum engenheiro admitiu a situação legal, que deverá ser estudada pelas autoridades, mas esse sistema barraria também motoristas alcoolizados, que mantém graus de atenção semelhantes ou piores aos de alguém com sono.)
Questionamos se o veto da leitura biométrica prevaleceria sempre sobre a vontade do condutor, mas os engenheiros da Volvo desviaram da questão: “Esta é outra questão a ser definida pelos legisladores e o ideal é chegarmos a um consenso”.
Este super olhar eletrônico pode até estrear em carros da Volvo antes da condução autônoma. Neste caso, serviria “apenas” à sua função secundária: reconhecer o condutor e fazer todos os ajustes — temperatura da cabine, altura do banco e do volante, grau de luzes da cabine, rota no GPS, favoritos do telefone Bluetooth — automaticamente.
Neste momento, uma imagem mental com todas as tecnologias do carro autônomo mostradas até então percorre minha mente: 1) a ideia é que, no futuro, o carro se mova sozinho por ruas e rodovias cruzando informações de radares e sensores instalados na própria carroceria com mapas e informações de trânsito obtidos da “nuvem” — a base de dados online, por meio de conexão de celular 3G ou 4G; 2) tudo será monitorado a distância por centrais da própria fabricante e de autoridades de trânsito; 3) a conexão de smartphones atuais permite compartilhar dados como lista de contatos, endereços, histórico de conversas nas redes sociais e até números de contas bancárias; 4) o carro terá uma imagem clara e constante do ocupante. Resumindo: o sistema teria acesso a todos os detalhes da vida pessoal do ocupante.
Com isso, a pergunta foi inevitável: “O carro autônomo representa algum tipo de risco à privacidade?” A resposta surge acompanhada de uma risada curta: “Todo jornalista pergunta isso”, confirma Lind. “A questão é que a câmera não faz gravações, apenas monitora”, complementa.
Lind afirma, porém, que o sistema permite, por exemplo, fazer uma imagem no padrão JPG, facilmente compartilhável, para “questões de segurança”. Funciona como uma atualização do sistema On Call, que já existe até mesmo nos carros da Volvo vendidos no Brasil atualmente e que permite, entre outras coisas, localizar o veículo pelo celular e ligar ou desligar seu motor a distância.
“Se o carro bateu, o sistema pode enviar essa imagem automaticamente a bombeiros e paramédicos, antecipando o estado dos passageiros”, exemplifica Lind. “Por outro lado, se você tiver seu carro furtado, poderá tirar uma foto de quem está ao volante, junto com a localização atualizada do veiculo e enviar à polícia”, especula.
O exemplo é bom e prevê uso semelhante ao de casos de furto/roubo de celulares com sistema Apple ou Android. Mas e se, hipoteticamente, o dono do futuro autônomo usar de má-fé para espionar o paradeiro do cônjuge, do filho ou de um funcionário, quem responderia?
Montadoras e autoridades têm até 2020 para encontrar uma solução.
Por Eugênio Augusto Brito, do Uol.

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