Nova modalidade de crime utiliza aplicativos de transporte para realizar furto qualificado às locadoras de veículos

Necessário partir-se de uma constatação empírica: conforme o Cadastro Nacional de Presos, elaborado pelo CNJ, e atualizado em Agosto de 2018, de todos os presos no Brasil, 8,63 % são afastados do convívio da sociedade pela prática do 4° crime mais comum no território brasileiro: o furto.

Apesar de se diferenciar do roubo pelo não emprego de violência ou ameaça, tal espécie delitiva, ainda mais na forma qualificada, merece especial atenção. Isso porque, para dar uma “roupagem legal” da transmissão de posse, o que tem ocorrido com demasiada frequência é a obtenção aparentemente lícita dos veículos por meio de contratos, até então, juridicamente válidos. Evita-se, assim, uma série de atos posteriores, como adulteração de chassi e placas para possibilitar sua regular circulação.

Nesse passo, o que tem se verificado na prática é que “laranjas” celebram contratos com empresas de locação de veículos, para posterior entrega a quem o contratou, mediante cobrança de valores, para que este efetue a revenda do bem por valor bem abaixo do mercado, mas com a vantagem de que o carro terá toda sua documentação original e não exige a falsificação de quaisquer documentos.

Ainda, para dificultar as investigações e o bloqueio administrativo dos veículos, estes são locados em um determinado Estado e imediatamente deslocados até outro.

Com isso, atos simples como intimação dos “contratantes” são extremamente demorados e são simplesmente ignorados pelos investigados, e a restrição de circulação do bem é geralmente efetuada apenas pelo órgão estadual, como o DETRAN-PR.

E não é só. Tal revenda tem ocorrido descaradamente por meio de redes sociais, com a expressa informação de que os veículos “não são clonados, são de locadoras“. Surge aqui evidente risco a esse ramo empresarial que pode ser diminuído pelo correto enquadramento penal dessa conduta.

Os proprietários dos veículos subtraídos, ao deslocarem-se até a Delegacia de Polícia, perceberão que a conduta será tipificada como apropriação indébita, nos termos do artigo 168 do Código Penal. Tal ilícito significa, basicamente, a retenção do bem cuja posse foi obtida licitamente. Nesse caso, existe um contrato de locação, que dá, então, a já mencionada aparência lícita do ato. Entretanto, é só aparência.

O que deve ser aqui analisado é o dolo do agente. Deve ser diferenciada a conduta do sujeito que inicialmente pretendia apenas locar o veículo e, vendo uma “oportunidade”, opta por não devolvê-lo, daquele que, desde o início, efetuou aquela contratação visando dar ao bem um fim diverso do que foi estipulado entre as partes. Nesse último caso, não há que se falar em “posse lícita”.

A conduta melhor se amolda, portanto, ao crime de furto qualificado pela fraude, previsto no artigo 155, §4º, II, da Lei Penal. Há quem defenda, ainda, a classificação jurídica como estelionato, mas o primeiro delito tem pena muito superior, de 2 a 8 anos, contra 1 a 5 anos no crime do artigo 171 do Código Penal. Além disso, caso o veículo seja transportado para outro Estado, a pena passa a ser de 3 a 8 anos (CP, art. 155, §5°).

A atuação do advogado, neste ponto, é fundamental para melhor demonstrar à autoridade policial a correta tipificação do fato – que impede, por exemplo, a suspensão condicional do processo -, além de possibilitar o amplo acesso da vítima aos autos e permitir a necessária produção probatória.

Além desses efeitos jurídicos, o mais importante aqui é o efeito prático: o enquadramento como furto possibilita a emissão de alerta pela Polícia Civil a todas as forças policiais do país, o que facilita a recuperação do veículo. Ademais, mesmo nos casos em que a locadora tenha contratado seguro do veículo, se o registro da ocorrência policial enquadrar o ilícito como apropriação indébita, não haverá cobertura indenizatória.

Outra questão de enorme relevância é a destinação que tem sido dada aos automóveis furtados mediante o esquema aqui descrito: o que tem se observado com preocupante frequência é a facilidade de sua utilização para realizar transporte de passageiros via aplicativos.

Nesse passo, verifica-se que tais empresas não tomam a mínima cautela quanto a tais questões, e, mesmo notificadas pelas autoridades, não depreendem os esforços necessários para auxiliar as investigações. Por vezes, afirmam não manter os dados dos motoristas cadastrados, ou se recusam a informar a localização atual do automóvel.

Por outro lado, a legislação que regulamenta essa espécie de transporte tenta impor àquelas pessoas jurídicas algumas obrigações visando evitar práticas delituosas. A exemplo do que já é aplicado em São Paulo/SP e no Rio de Janeiro/RJ, em Curitiba/PR esse tipo de prestação de serviço é regulamentado pelo Decreto nº 1.302, de 18/04/2017.

De todo modo, conforme se verifica, a legislação atual é muito mais voltada à segurança e privacidade do usuário, e à regular manutenção da mobilidade urbana, do que à proteção patrimonial de quem pode ser efetivamente lesado com tal prática, como os proprietários de empresas locadoras de veículos – até porque tal prática é bastante recente.

Portanto, tendo em vista a dificuldade de o empresário em evitar tal prática delitiva, cabe o repasse de maior parcela de responsabilidade para a prevenção de tais condutas às empresas de transporte por aplicativo. Medidas simples, como exigir do efetivo proprietário do veículo uma autorização específica para a utilização dos automóveis para tal espécie de prestação de serviços, já poderiam servir como verdadeiro freio a esse “mercado paralelo”.

Eis aí uma nova modalidade criminosa, cuja prática tem aumentado diariamente no país. Isso tudo decorrente das novidades tecnológicas, as quais, se por um lado geram facilidade à grande maioria da população, por outro dão margem à atuação espúria daqueles que se utilizam de tais facilidades para obter vantagens indevidas.

 

Fonte: Terra

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