Palio Fire e a luta pelo mínimo
Imagine aquela carrocinha de cachorro-quente da pracinha, parada certa para matar a forme sem gastar muito. Até que um dia, na mesma praça, chega uma Kombi a vender tigelas de yakisoba que custam R$ 0,50 a menos do que o tradicional “podrão”. Começa, então, uma briga (em centavos) para ver quem mata a fome do cliente da forma mais barata. É mais ou menos isso o que vem acontecendo na guerra travada por Fiat e Chery.
Em janeiro passado, logo após ter que tirar de linha o veterano Mille, a Fiat mostrou modificações no Palio Fire, que passou a ser anunciado como “o carro mais barato do Brasil” (R$ 23.990, a versão de duas portas).
Só que, em fevereiro, a marca de Betim aumentou os preços e o carro passou a custar R$ 24.490.
Eis que, na semana passada, o Palio Fire foi desbancado do posto de “mais barato”: a chinesa Chery baixou o preço do compacto QQ, que agora custa R$ 24.449 — exatos R$ 41 a menos do que o Fiat.
É praticamente um empate técnico, mas foi o suficiente para que a marca italiana fosse obrigada a refazer o slogan. Agora, o Palio Fire é “o carro mais barato produzido no Brasil.”
Aí, a questão: deficiências de projeto, estabilidade e construção à parte, o Chery QQ sai de fábrica recheado de equipamentos. E quem quiser gastar menos de R$ 25 mil pelo Fiat terá que abrir mão de itens com que a maioria dos motoristas de 2014 já estão acostumados.
Dirigir um Palio Fire desprovido de opcionais parece uma volta aos anos 80, como pudemos sentir na pele ao longo de três semanas.
Com ar e direção hidráulica, preço do velho Palio vai a R$ 28 mil
Os motoristas que já estão habituados à assistência hidráulica (ou elétrica) vão achar a direção do Palio Fire pesada nas manobras de garagem. Quer moleza? Desembolse R$ 1.126 pelo equipamento — mas aí e já se vai muito além do preço do Chery QQ.
Falando nisso, o novo volante tem desenho semelhante ao do Fiat Idea. Mas, no caso do Palio Fire, houve uma simplificação: o aro tem partes de plástico duro e liso, árido ao toque.
Até aqui, tudo bem. Difícil é imaginar que, em 2014, alguém ainda pague R$ 24.490 em um carro zero-quilômetro sem ar-condicionado — ainda que seja frotista.
Optamos por experimentar tal sensação em dias de verão. Vidros abertos, ventilador ligado em velocidade máxima (3) para ver se quebra o galho, e o que vem é uma lufada quente.
Não ter ar-condicionado hoje é ser minoria. No engarrafamento, até os caminhões de entrega urbana estão de vidros fechados curtindo o ambiente refrigerado. Solidários ao Palio Fire, só mesmo as Kombis e um antediluviano Mercedes LP-321 “cara chata”.
Começo a invejar os passageiros de um ônibus 126 com ar-condicionado ou mesmo quem está nos congelantes trens chineses do Metrô. Fica assim: se você mora no Rio, gaste mais R$ 2.406 pelo item que deveria ser básico em qualquer carro atual.
A carroceria de duas portas é outra característica em extinção no nosso mercado. Minha mãe, idosa, nem lembrava mais como se faz para chegar ao assento traseiro.
Na essência, esse Fire básico é o Palio lançado em 1996. Seu volante aponta para cima e não tem ajustes, assim como também falta a regulagem de altura para o banco do motorista. É difícil ficar à vontade.
O painel mudou para 2014: tem aparência mais moderna, com partes em cor clara e peças algo desniveladas.
É singelo como o novo quadro de instrumentos, emprestado pelo Uno. Tem velocímetro, hodômetro, marcador do tanque, relógio e um “econômetro”. Bancos e painéis das portas ganharam novos tecidos que suavizam a modéstia geral. E a grade também mudou — é cromada, que chique!
Para mover o Palio, o manjado motor Fire 1.0 de oito válvulas e 75cv. Como o carro é aliviado de equipamentos, pesa pouco (920kg) e as arrancadas são até espertas.
Nas ladeiras de Quintino, Engenho de Dentro e Pilares foi preciso trabalhar bastante no câmbio para manter o fôlego. Em contrapartida, a economia é louvável: o modelo foi nota “A” nas medições de consumo do Inmetro. Fora isso, é um carro robusto e confiável.
Apesar de despido de supérfluos, esse Palio Fire tem alguns “luxos”: retrovisores externos com comandos internos, para-choques na cor da carroceria, luz de leitura dianteira e vidros verdes. Tem ainda banco traseiro rebatível e os obrigatórios airbag duplo e freios com ABS.
O carro que chegou para testes trazia o Kit Celebration I (de R$ 1.566). O pacote inclui os apoios de cabeça e cintos de três pontos retráteis para o banco de trás (facilitando a fixação da cadeirinha de bebê).
O kit também tem acionamento elétrico dos vidros e travas, desembaçador, limpador e lavador do vidro traseiro, além de preparação para som. Quer o rádio com e entrada de USB? Pague mais R$ 184.
As rodas de liga leve o os faróis de neblina entram no kit Stile (R$ 1.228). No fim das contas, um Palio Fire como o testado sairia por R$ 27.683 — sem ar-condicionado e sem direção hidráulica, vale enfatizar. Com todos os opcionais e quatro portas, o preço vai a R$ 32.334.
Pode ser que a configuração totalmente “pelada” do Palio Fire atenda a frotistas que não se importem com o conforto do proletariado. Mas quem quer um carro particular para o dia a dia acaba pagando à parte para ter o mínimo indispensável nos dias de hoje. E o barato pode sair caro.
Por Fernando Miragaya, do O Globo.