Correr atrás de chip vira rotina para empresas no Brasil
A crise na cadeia global de chips semicondutores ameaça novas paralisações em montadoras brasileiras e, após mais de um ano de pandemia, afeta de modo crítico a indústria de eletrônicos, que tenta se adaptar diante da escassez do componente.
A insuficiência de chips impacta fábricas de automóveis como General Motors, Ford, Stellantis e Volkswagen em todos os continentes. O problema das matrizes reflete diretamente nas subsidiárias, incluindo o Brasil. Há risco de novas paradas nos próximos meses diante da falta de semicondutores, de acordo com Anfavea, associação do setor.
“As empresas indicam essa possibilidade para as próximas semanas, para maio, caso não haja uma solução”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea.
Em seu balanço do primeiro trimestre, por exemplo, a Ford alertou que reduzirá a produção no segundo trimestre em 50%, ou 1,1 milhão de unidades. A montadora disse que a escassez global de semicondutores custará cerca de US$ 2,5 bilhões.
As companhias esperam um cenário mais estável para a cadeia no segundo semestre, embora alguns analistas joguem o reajuste apenas para 2022. Por enquanto, as automotivas tentam mitigar o risco acelerando a aquisição de componentes por via aérea, por exemplo, o que encarece a produção.
A indústria de eletroeletrônicos enfrenta o mesmo desafio. Embora se beneficie das vendas —que saltaram durante a pandemia—, 44% das empresas relatam entraves para acessar componentes eletrônicos, incluindo chips, vindos da Ásia, mostra sondagem da Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica) feita em março.
Isso gera atraso na produção e na entrega, além de repasse ao preço para o consumidor final de computadores e celulares. Segundo a associação, 87% das empresas perceberam pressões acima do normal nos valores de componentes e matérias-primas em março, índice que era de 30% em janeiro de 2020.
“As empresas estão buscando fornecedores alternativos no mercado internacional porque não há grande disponibilidade de chips no mercado doméstico”, diz Humberto Barbato, presidente da Abinee.
A explosão na demanda por tablets, celulares, TVs e computadores, motivada pelo trabalho remoto de grande parte da população durante a crise de Covid, é uma das principais causas para o desequilíbrio da cadeia. Os componentes-chave para a fabricação de eletrônicos vêm da Ásia e dos Estados Unidos.
“Os kits de componentes aumentaram, em média, 30% nos últimos 12 meses. Aliado ao aumento do dólar, de mais de 30%, gerou uma grande inflação”, diz Alexandre Ostrowiecki, presidente da Multilaser.
A empresa foi menos lesada do que outras porque tem uma planta própria de semicondutores, o que não é comum no mercado nacional, dependente de importação. Mesmo assim, não está imune: a aquisição de bolachas de silício, a matéria-prima dos chips, também está travada.
“Não há previsão de melhora no curto prazo porque os custos lá fora continuam subindo”, afirma Ostrowiecki.
Na Positivo, maior fabricante de computadores do país, os dois últimos meses foram os mais difíceis para a compra de chips. “Nosso dia a dia tem sido correr atrás de chip e não vemos luz no fim do túnel para essa questão”, afirma Hélio Rotenberg, presidente da companhia.
“Todas as indústrias do mundo usam chips de controlador de som e o produto está engargalado nas fabricantes.”
Chips semicondutores são essenciais para produtos tecnológicos de ponta, de computadores a carros e ao 5G. Embora o mercado tenha convencionado chamar de “crise de semicondutores”, a escassez não é de silício, um dos elementos mais abundantes do planeta, mas do produto manufaturado.
De modo simplificado, um chip semicondutor funciona como um interruptor de luz mecânico, só que ele não se move e depende de uma corrente elétrica para conduzir energia ou não.
“O simples ato de enviar uma foto do celular a outra pessoa envolve o trabalho simultâneo de milhões de transitores, milhões de circuitos de semicondução dentro do chip do celular”, diz Sergio Gama, diretor de dispositivos inteligentes da Rockwell para a América Latina.
A crise de abastecimento atingiu o ápice neste ano, embora a indústria já sinalizasse problemas antes da pandemia, quando o ex-presidente americano Donald Trump iniciou uma guerra comercial contra a China.
Para conter o avanço da chinesa Huawei no mercado de 5G, ele impediu a gigante asiática de comprar chips dos Estados Unidos. A chinesa correu para estocar o produto e começou a afetar a entrega a outras companhias.
Veio a pandemia, que alterou os padrões de consumo nas casas, elevando a procura por computadores, smartphones e tablets, que demandaram maior produção fabril. A Apple, por exemplo, registrou entre outubro e dezembro de 2020 o melhor trimestre em seis anos para a venda de iPads.
Paralelo a esse movimento, o setor automobilístico, que utiliza os mesmos chips de celulares, declinou. Quando iniciou seu processo de retomada, no segundo semestre, se deparou com uma procura por carros superior à projetada. As fábricas de chips não deram conta da demanda simultânea das duas indústrias.
Para finalizar a série de problemas, a japonesa Renesas, que responde por 30% do mercado de chips para automóveis, pegou fogo em março. Levará meses para trocar as máquinas atingidas e voltar a suprir o mercado.
O gargalo poderia ser resolvido se as fabricantes asiáticas, que respondem por grande parte do abastecimento, elevassem a produção. Só que a ampliação de plantas de chips é cara e demorada, e exigem sofisticados processos de automação. As fabricantes teriam que contar com a sorte para ampliar as fábricas sem qualquer certeza sobre o comportamento do consumo do pós-pandemia.
Além disso, foram as maiores beneficiadas com a corrida por chips, registrando aumentos significativos de receita. O mercado global de semicondutores avançou de 6% a 10% em 2020, a depender da consultoria, com vendas superiores a US$ 440 bilhões. Chips de memória, GPUs e 5G impulsionaram a alta, segundo a Gartner.
A projeção para 2021 é de crescimento de 10,9%, de acordo com a World Semiconductor Trade Statistics.
Sem data para a normalização da cadeia global, as indústrias também não podem depender da mudança de governo nos Estados Unidos, que influencia os rumos do mercado detendo grandes fornecedores em seu território. Embora Joe Biden tenha uma postura favorável a soluções multilaterais, o foco do país é o abastecimento interno.
“Mesmo que os Estados Unidos tomem uma atitude para normalizar a questão, isso vai levar muito tempo, porque o abastecimento local é prioridade bipartidária, de republicanos e democratas”, afirma Carolina Moehlecke, professora de relações internacionais da FGV.
O governo Biden assinou uma ordem executiva que tenta reduzir a dependência de produtos importados, o que inclui semicondutores.
Fonte: Folha de São Paulo