Morte Invisível
Rubens, 53, com transtorno de ansiedade, não vê a hora de se aposentar. Eduardo, 33, obeso, reclama do estresse constante. Francisco, 58, que sofreu embolia arterial na perna, chora ao pensar na distância da família. Fernanda, 34, que tem síndrome do pânico, está há três anos afastada do trabalho. Paulo, 47, com escoliose, agora também convive com uma dor contínua no punho.
Durante cerca de um mês, a reportagem de O TEMPO acompanhou de perto a rotina de motoristas de ônibus, trocadores, caminhoneiros e taxistas e radiografou um quadro crescente de adoecimento e afastamento do trabalho causado por longas jornadas, clima hostil, ambiente estressante e estrutura precária.
Nos dias ao lado desses profissionais e em conversas com especialistas, a reportagem catalogou mais de 30 doenças desenvolvidas ou agravadas relacionadas aos trabalhadores do transporte no país. Desde conjuntivites provocadas por excesso de poluição no trânsito até casos complexos de embolia arterial em razão da postura e do sedentarismo, passando por todo tipo de transtorno psicológico, a saúde de quem vive ao volante pede socorro.
Em Belo Horizonte, por exemplo, um em cada três condutores e cobradores de lotação (35%), em um período de 12 meses, se licencia por problemas de saúde decorrentes da atividade profissional, de acordo com estimativas do sindicato dos rodoviários e de levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizado em 2013. Essa espécie de epidemia invisível se esconde em meio a um cotidiano de muita fumaça, quadro de horários rígido, assaltos, buzinas, reclamações e empurra-empurra.
“É um trabalho extremamente agressivo, e a relação do tipo de atividade com a saúde, infelizmente, é negligenciada. Os trabalhadores do transporte estão cada vez mais doentes”, diagnostica o médico Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
Na Grande BH, foram registrados 15.552 afastamentos previdenciários de motoristas e cobradores por motivo de saúde entre 2010 e 2014, segundo investigação do Ministério Público do Trabalho.
Quando a cabeça adoece
Assalto nosso de cada dia
“Não temerá o terror noturno, nem a flecha que voa de dia. (…) Mil cairão a seu lado, e 10 mil a sua direita, mas nada o atingirá”. Agarrada à Bíblia, Fernanda de Souza, 34, lê o Salmo 91, seu preferido, e chora, enquanto ainda tenta exorcizar de dentro da cabeça as lembranças reais de mais de dez assaltos vivenciados entre 2005 e 2013, quando trabalhou de trocadora em ônibus da rede de transporte da capital mineira.
Diagnosticada com depressão profunda e síndrome do pânico, ela está há três anos sem trabalhar e luta para retomar uma vida normal, apesar da batelada de medicamentos e dos fantasmas do passado. Lembrar o episódio mais traumático, a bordo do ônibus azul da linha 4102 (Serra/Aparecida), ainda dói muito para a ex-trocadora.
“Começamos a corrida à 0h40. Um minuto depois, no primeiro ponto, o rapaz já entrou e colocou o revólver na minha cabeça. Queria dinheiro, mas a gente tinha acabado de sair. Não tinha nada. Ele não aceitava. Ficou me xingando, puxando meu cabelo e ameaçando me matar. Foi horrível”, conta, tremendo e aos prantos, como se estivesse revivendo a cena de terror.
Apesar do impacto psicológico a cada novo assalto, ela e os colegas eram obrigados a continuar rodando normalmente e só fazer o Boletim de Ocorrência (BO) no final da jornada, em média, de sete horas passando pela madrugada. As imagens das câmeras quase nunca eram usadas para identificar os criminosos. “Era muita pressão da empresa. Não podíamos parar. Muitas vezes, dependendo do valor roubado, o prejuízo era descontado no nosso salário. As câmeras estão lá para vigiar o trabalho da gente. Não os bandidos”, critica.
Entretanto, depois daquele dia, Fernanda nunca mais foi a mesma. Nem as orações nem os pedidos de proteção a Deus ao entrar e sair do ônibus surtiram efeito. A disposição para trabalhar e a coragem para sair de casa também haviam sido furtadas. O marido foi quem deu o alerta ao perceber a mudança no comportamento da mulher e a obrigou a ir a um psiquiatra.
Mesmo com o diagnóstico de um quadro psicológico grave e em estágio avançado, durante mais de um ano ela ainda brigou com a empresa de transporte e com os médicos do INSS para não ter de voltar a trabalhar ainda doente. Chegou a ficar sete meses sem receber. Só após vencer uma ação na Justiça, ela conseguiu de volta o salário – na ativa, ela ganhava cerca de R$ 1.100; hoje, de licença, recebe menos.
“Não dou conta de voltar ao transporte coletivo. Mas preciso fazer alguma coisa, minha família também foi afetada. Ainda sonho em poder fazer um curso de magistério para poder trabalhar com crianças”, diz Fernanda, sem muita certeza sobre um futuro ainda embaçado pelos olhos cheios d’água.
Por dia, entre janeiro e maio de 2016, foram registrados pela Polícia Militar, em média, sete assaltos a ônibus só em Belo Horizonte. Em 2015, a média era de quatro assaltos por dia no mesmo período
“Eu não saía mais nem no portão de casa. Só ficava deitada no quarto escuro. Comecei a esquecer tudo até minhas senhas do cartão do banco. Eu vi armas na minha cara o tempo todo, dia e noite”
Fernanda de Souza, 34 anos ex-cobradora
Do banco do táxi para o divã
Rubens Marques de Oliveira, 53, fala rápido, mexe com os braços, gesticula sem parar, reclama do trânsito, da concorrência do Uber, fala da mulher, filosofa sobre a vida. Mas, dessa vez, a seu lado, a ouvir seus problemas, não estão os passageiros do táxi – ele está na praça há 32 anos -, mas a psicóloga Patrícia Alves dos Reis.
Para Patrícia, casos como o de Rubens, diagnosticado com um transtorno de ansiedade provocado pelo estresse das ruas, são cada vez mais comuns em seu sofá, em uma ampla sala nas dependências do Sest/Senat, às margens do Anel Rodoviário, na região metropolitana de Belo Horizonte. O local presta serviços sociais e de formação aos trabalhadores do transporte e integra o chamado Sistema S.
Com uma demanda cada vez maior, a “doutora Patrícia”, como é conhecida entre seus pacientes, já consegue hoje dividir os transtornos mais comuns em cada tipo de atividade. No grupo dos caminhoneiros, a procura por atendimento é motivada, na maioria das vezes, pela dependência química: crack, comprimidos para se manterem acordado durante a noite (rebite) e cocaína.
De acordo com pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT), divulgada em 2016, 78% dos caminhoneiros não fazem exames toxicológicos e 45,6% admitem já ter sido ofertado algum tipo de droga ilícita a eles nas estradas. “Há ainda a questão da desestruturação da família. Eles ficam longos períodos longe de casa e isso acarreta consequências psicológicas neles e nos familiares”, acrescenta a psicologa.
Entre os taxistas, como Rubens, a maior parte vai parar no consultório de Patrícia com um estresse pós-traumático, depois da vivência de um assalto ou de uma briga de trânsito, inclusive com agressão física. “Já tive briga com companheiro de trabalho, com motoqueiro. Já agredi e fui agredido”, admite Rubens, enquanto aguarda a hora de conversar com a psicóloga para amenizar a ansiedade e o nervosismo. “Tem os bandidos, tem o trânsito ruim, tem o passageiro com pressa, tem o Uber. Tá difícil. Estou saindo de casa as 5h e volto às 19h. Não vejo a hora de me aposentar”, desabafa.
Motoristas de ônibus e trocadores, conta ela, relatam no consultório uma rotina estressante, geralmente, com o desencadeamento de quadros de depressão. De acordo com a psicóloga, apesar das peculiaridades de cada indivíduo na manifestação da doença, as causas para uma saturação psíquica dos trabalhadores do transporte urbano são, de certa forma, comuns.
“Eles se queixam de excesso de barulho o dia inteiro, dificuldade em lidar com passageiros e o aumento de jornadas. Os taxistas têm reclamado demais da perda de renda após o Uber. São queixas recorrentes, mas eles só nos procuram quando esse estresse já está no nível máximo, no nível do insuportável”, relata.
Surto coletivo
Renato (nome fictício) atende o telefone da reportagem e, ao se dar conta da tentativa de convencê-lo a dar uma entrevista, logo se arrepia do outro lado da linha: “De jeito nenhum. O senhor vai me desculpar, mas aquilo acabou com minha vida. Foi um erro na época ter falado com a imprensa”. O episódio qual ele não quer nem se lembrar ocorreu há quatro anos e transformou a vida do ex-motorista de ônibus e também de seus colegas em Belo Horizonte. Em uma quarta-feira de agosto de 2012, ele conduzia um ônibus da linha 9250 (Caetano Furquin/Nova Cintra) quando foi fechado por uma caminhonete, na região da Savassi, uma das mais movimentadas da capital mineira. O semáforo abriu e fechou três vezes, mas o ônibus continuou parado, obstruído pelo carro de passeio à espera de um passageiro.
Quando finalmente o veículo liberou a passagem para o coletivo, o motorista da caminhonete, ao ver a irritação do condutor da lotação, ainda o provocou com um gesto ofensivo. A situação deflagrou um surto no já estressado motorista. Renato freou, desligou o veículo deixando a chave na ignição e desceu do ônibus no meio da pista. “Eu surtei, simplesmente surtei e saí andando para minha casa. Só pensei em tudo quando já estava longe dali”, disse na época. Licenciado por 12 dias para se acalmar, o motorista nunca mais retornou ao emprego. “Mudei de vida, mas deu tudo errado. Fiquei marcado por aquele estresse”, relata hoje o ex-motorista, atualmente desempregado, antes de encerrar a rápida conversa telefônica.
O surto de Renato gerou uma espécie de efeito dominó, encorajando colegas também estressados com o cotidiano da profissão. E outros abandonos de veículos lotados de passageiros em plena corrida se tornaram uma cena não tão rara nas ruas da capital mineira. “Nessa mesma linha, menos de um ano depois, outro condutor bateu boca com os passageiros porque eles estavam culpando ele pelo atraso na viagem. Mas o trânsito estava todo parado. Ele não aceitou aquilo e largou o ônibus onde estava para a ira de todos”, conta o diretor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário de Belo Horizonte e Região Metropolitana, Luciano Gonçalves. “Agora ficou frequente esse negócio de ‘dia de fúria’. O estresse é muito grande e, o cara, às vezes, não suporta toda a pressão. Acaba explodindo”, acrescenta, sem saber precisar o número dessas ocorrências nos últimos anos.
Quando o corpo adoece
O peso da profissão
Taxistas e motoristas de caminhão e de ônibus têm taxas de sobrepeso e de obesidade superior às de outras profissões. Entre os taxistas, de acordo com uma pesquisa divulgada neste ano pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), num grupo de mil profissionais das principais regiões metropolitanas do país, 76% estão acima da faixa de peso considerada normal, levando em conta o Índice de Massa Corporal (IMC). Na população brasileira, conforme os últimos dados do Ministério da Saúde,esse percentual é de 52%.
O caso dos motoristas de caminhão é ainda mais grave: 77% estão acima do peso, estando um em cada quatro com obesidade nível 1, conforme o levantamento da CNT. O excesso de peso, na avaliação da nutricionista do Sest/Senat Maísa de Carvalho, está associado diretamente a vícios e imposições a profissão. “É uma rotina intensa, estressante, sempre ligada a cumprir prazos. Então, eles dirigem muito tempo sem parar, fazendo lanches rápidos, calóricos, gordurosos e cheios de açúcares. Além disso, mais da metade desses profissionais é sedentária, não faz nenhum tipo de exercício físico”, alerta a nutricionista.
Cliente do consultório de Maísa, o motorista de ônibus Eduardo Henrique de Paiva, 33, luta contra a balança e a tensão da profissão. Em seu micro-ônibus, ele é obrigado a dividir suas seis horas e meia de trabalho, entre os bairros Borba Gato (Sabará) e Industrial (Contagem), ambos na região metropolitana de Belo Horizonte, entre dirigir e cobrar a tarifa dos passageiros. Não há cobrador. “Essa rotina pesada acabava me levando a descontrolar o corpo todo. Me cansava à toa, o colesterol estava alterado, respirava mal porque eu descontava esse estresse na comida”, conta, sorrindo, depois de constatar a perda de 4,7 kg em um mês com a orientação nutricional. Ao lado do assento no ônibus, onde geralmente ficavam uma lata de refrigerante e pacotes de bolacha recheadas Eduardo agora mantém uma garrafa de água e frutas.
Barulho, literalmente, ensurdecedor
Na cabine do ônibus, outro companheiro inseparável dos motoristas é o barulho alto e constante do trânsito ao redor e dentro do próprio veículo – o ruído é maior em lotações com motor dianteiro. De acordo com o diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), o médico Dirceu Rodrigues Alves Júnior,um condutor está exposto a variações de ruído no trânsito entre 78 e 93 db, sendo a média 87 db, dois pontos acima do máximo recomendado pela legislação trabalhista – no Brasil, a lei prevê um limite de 85 db para jornada de oito horas e 86 db, para sete horas.
Essa rotina barulhenta ao longo dos anos, alerta o especialista, acarreta maior chance de lesão no aparelho auditivo, podendo o profissional ter um zumbido constante dentro do ouvido, chamado pelos médicos de “tinnitus”, e uma perda auditiva acelerada. “O motorista profissional, às vezes, reclama ao médico sobre um zumbido à noite, quando ele chega em casa. Na verdade, o zumbido está lá o dia todo, porém, de noite, há um silêncio no ambiente, e esse ruído se torna perceptível”, comenta o dirigente da Abramet. Segundo ele, o quadro pode evoluir para uma surdez, fator incapacitante para o exercício da atividade.
Na região metropolitana de Belo Horizonte, motoristas (16%) e cobradores (11%) do transporte coletivo relataram o diagnóstico de perda auditiva confirmado pelo médico. Os dados fazem parte de um amplo levantamento feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2013 com cerca de mil motoristas e cobradores da capital mineira, de Contagem e de Betim.
Ainda conforme esse estudo, os três problemas mais frequentes reclamados pela categoria são dor nas costas (70% dos motoristas e 68% dos cobradores), dor nas pernas (67% dos motoristas e 71% dos cobradores) e cansaço mental (69% dos motoristas e 67% dos cobradores)
Madrugada ao volante tem efeito devastador
Se dirigir horas a fio durante o dia já cobra um preço alto à saúde dos profissionais do transporte, a madrugada pode ser considerada devastadora para os motoristas. Uma série de estudos de um grupo de pesquisa de saúde do trabalhador, encabeçado por professores da USP e da Universidade Católica de Santos, destaca a maior prevalência de várias doenças em profissionais com jornada noturna.
A doutora em saúde Elaine Marqueze, integrante do projeto e especialista em trabalho noturno, credita à atividade problemas como dessincronização dos ritmos cardíacos, obesidade, doenças metabólicas – o diabetes, por exemplo, alterações comportamentais e um déficit de sono. Ela pesquisou o impacto do trabalho no organismo num grupo de 57 motoristas – 26 diurnos e 31 com turnos irregulares (noite e dia).
“Encontramos nos motoristas com jornadas noturnas maiores concentrações de leptina, o hormônio da saciedade, produzido pela gordura corporal. Como há maior prevalência de obesos nesse grupo, eles produzem desse hormônio. E quando há produção demasiada desse hormônio (hiperleptinemia), como constatamos no estudo, ele perde a função de regular o apetite. Então esses motoristas nunca estão satisfeitos, a vontade de se alimentar é constante. A alimentação acaba ainda sendo uma estratégia para se manter acordado”, explica.
De acordo com Marqueze, motoristas noturnos têm o risco aumentado em 40% de desenvolve problemas cardiovasculares. Outro vilão são os distúrbios do sono provocados pela troca do dia pela noite. As queixas de um sono não reparador entre esses profissionais são constantes. Isso se explica, de acordo com a especialista, porque durante o dia o sono tende a ser mais superficial, com média diária de duas a quatro horas a menos de tempo dormindo entre os motoristas de diferentes turnos.
“O trabalhador noturno, quando vai dormir de dia, além do barulho, tem a questão da luminosidade. Não ocorrem durante o dia hormônios resposnáveis por nos levar ao sono, como a melatonina. Ela, por exemplo, nos induz a entrar num sono mais profundo e só ocorre na ausência de luz”, avalia. Os efeitos no corpo e no ânimo dessa inversão são um cansaço constante e um estresse psicológico. “É como se o motorista noturno estivesse indo para o Japão todo o dia. Ele terá um ‘jet-lag’ permanente. Apenas 5% desses profissionais, por alguma razão, não vão sofrer esse efeito deletério”, afirma Marqueze.
Ainda segundo a professora, uma forma de amenizar as tormentas do trabalho noturno é adotar cochilos programados de no máximo 30 minutos durante a jornada. Eles são capazes de manter o corpo em alerta por mais duas horas.
“O trabalho noturno deveria ser considerado insalubre. Desde 1999, ele já é classificado como fator de risco à saúde”
Elaine Marqueze, doutora em saúde e professora da Universidade Católica de Santos
Inspirando poluição, expirando doenças
Passar o dia nas ruas de São Paulo diariamente equivale, a longo prazo, a fumar de um a dois cigarros por dia, em relação aos danos causados ao pulmão. Para qualquer paulistano o dado já é alarmante, mas para quem passa o dia trabalhando no trânsito, a situação é ainda mais preocupante. Isso acontece por causa da grande poluição atmosférica que as pessoas estão sujeitas na maior metrópole brasileira, resultado, principalmente, dos gases emitidos pelos veículos automotores, responsáveis por 90% do problema na capital paulista, segundo dados da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto do Coração em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) em 2012 mostrou que os taxistas e os controladores do tráfego tem uma exposição a material particulado fino – resíduos das queima de combustíveis – três vezes maior que trabalhadores do parque Horto Florestal, na Zona Norte da cidade, região mais arborizada.
Os taxistas e controladores do tráfego estão expostos a 70 microgramas por metro cúbico de ar de material particulado fino, já quem passa o dia no parque está exposto a 20 microgramas por metro cúbico de ar. Ambos os registros são superiores ao recomendado pela Organização Mundial de Sáude (OMS), que é de 10 microgramas por metro cúbico de ar.
“Os indivíduos com mais exposição à poluição estão sujeitos a perdas da função pulmonar e elevação da pressão arterial. Elas tendem a ter uma redução da variabilidade da frequência cardíaca. O ideal é estarmos com 70 batimentos cardíacos por minuto em atividades normais, porém essa frequência baixa quando dormimos ou aumenta quando fazemos atividades físicas, por exemplo. A poluição limita essa variação e causa uma predisposição a doenças como arritmia – distúrbio do batimento ou ritmo cardíaco – e parada cardíaca que podem levar a uma morte súbita”, explica o médico da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Ubiratan de Paula Santos.
O médico destaca ainda que os danos da poluição atingem a população em geral, porém podem ser mais intensos para os motoristas profissionais. “Os taxistas ficam muitas horas em meio a esse ambiente, já que costumam trabalhar cerca de 10 horas por dia. O problema se repete para os motoristas de ônibus que geralmente ficam atrás de outros coletivos inspirando todo a fumaça que sai deles”, afirma Santos.
Segundo ele, é perceptível também que a poluição diminui a quantidade de lágrimas e portanto aumenta a probabilidade de inflamações nos olhos. A poluição também reduz a defesa do pulmão deixando as pessoas mais sujeitas a doenças respiratórias. “É como se as pessoas expostas a toda essa poluição fumassem um ou dois cigarros por dia no que se refere aos danos causados ao pulmão, por que o cigarro ainda tem outras substâncias cancerígenas que trazem outras mazelas a saúde, por exemplo”, conclui o médico.
De carona
A vida passou pela janela, e Francisco não viu
“Eita homem que trabalha, viu”. Com os olhos marejados e o celular em punho, o taxista Francisco Antônio Nunes, 58, se entristece ao falar da mensagem do filho em resposta ao pai que, por ter que trabalhar no fim de semana, não poderia se encontrar com ele. A recusa do taxista já é costumeira, bem como a decepção do filho. No banco do passageiro, a reportagem de O TEMPO embarcou na rotina do taxista e nos impactos do trabalho dele na relação familiar.
“Separei em consequência da minha atividade, que está pesada e cansativa. Perdi minha família por isso. Já chegava em casa nervoso e sem condições de atender as necessidades de toda a família. Meus filhos me cobrando como agir, e eu não estava tendo cuidado com eles”, conta Francisco com a voz embargada.
Às 4h, o taxista já está em seu ponto de táxi na região Centro-Sul de Belo Horizonte à espera de primeiro passageiro. A partir dali começa uma extensa jornada em meio ao caótico trânsito de Belo Horizonte. O trabalho só termina 12 horas depois, mas se as corridas não derem lucros suficiente, este prazo pode se estender.
As várias horas trabalhando sentado e na mesma posição em 36 anos de profissão também deixaram Francisco com um grave problema de circulação. Há 12 anos, ele teve uma embolia arterial obstrução das artérias que impede a circulação normal do sangue e precisou fazer uma ponte de safena na perna direita. Atualmente, ele ainda toma remédios para melhorar a circulação, sente muita dor e, como alternativa, caminha em volta do carro enquanto aguarda passageiros.
“Esse problema de saúde gerou mais estresse. Tudo foi se agravando, e eu levando os problemas físicos em consequência da minha atividade para dentro de casa. Como eu fiquei sem trabalhar, estava sem rentabilidade, e isso só piorou tudo. Ultimamente, eu não tenho conseguido dormir bem, a ansiedade e o nervosismo têm sido muito grandes”, lamenta.
A solução para o estresse ele já sabe: precisa tirar alguns dias de férias, mas o lado financeiro não permite. “Nos últimos quatro meses, eu só tirei folga em um fim de semana”, conta o taxista. O cansaço físico e mental de Francisco está tanto que já faz com que ele pense em largar o táxi.
“Vou confidenciar uma coisa pra vocês: mais seis meses, e eu paro. No ritmo em que está, eu não trabalho. Eu tenho uma aposentadoria muito pequena. O que vou fazer é viver dela. Vou embora para minha casa na roça e morar lá. Se eu pudesse hoje, eu faria tudo diferente. Dava valor a quem eu não dei e, com certeza, ia cobrar meus valores também, porque eu também não tive o meu”, lamenta Francisco.
Redução de danos
Sindicatos atuam de forma paliativa
A cada quinze dias, o técnico em enfermagem e ex-membro do Sindicato Intermunicipal dos Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários, Taxistas e Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens de Minas Gerais (Sincavir) Avelino Moreira, vai até os pontos de táxis para medir a pressão arterial e a glicemia dos taxistas. O objetivo é conscientizar os profissionais sobre os cuidados com a saúde.
“Os motoristas que tiverem alguma alteração da pressão ou da glicemia são encaminhados para o médico do sindicato. Além disso, o trabalho é importante para orientar os motoristas com relação aos cuidados com postura, estresse e alimentação”, explica Moreira.
Segundo ele, por meio do trabalho foi possível identificar que as doenças que estão aumentando bastante entre os taxistas são a hipertensão, o diabetes e as dores lombares. “Por causa da correria, muitos taxistas não cuidam da saúde, porém essa é uma profissão em que há um desgaste físico muito grande”, enfatiza o técnico de enfermagem.
Para os motoristas de ônibus, quem realiza as ações relacionadas à saúde é o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (SetraBH). Todo ano, entre outubro e novembro, são realizadas palestras, seminários e cursos de reciclagem. Também são feitas vistorias nas áreas de trabalho para a avaliação e o mapeamento dos riscos potenciais nesses ambientes, como ruídos e temperaturas elevados, e a adoção de ações para sua neutralização.
As empresas de transporte coletivo por ônibus são orientadas pelo Setra a motivarem seus colaboradores e familiares clientes da Unimed-BH a participarem também das palestras e das atividades promovidas periodicamente nos centros do plano de saúde em Belo Horizonte e em Betim e Contagem, ambas na região metropolitana.
“Das atividades, constam cessação do tabagismo, reeducação alimentar, atenção ao diabético, hábitos saudáveis no diabetes, atenção ao idoso, dança para idosos, cozinha experimental, atenção à gestante, doenças causadas pela emoção, reeducação alimentar infantil e atenção à hipertensão”, informa o Setra, por meio de nota.
Mais-valia, menos saúde
O adoecimento dos trabalhadores do transporte em todo o Brasil, recentemente, tem extrapolado a esfera das empresas e dos consultórios médicos e chegado à Justiça. Em Minas Gerais, o Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou só no ano passado 134 inquéritos e ajuizou 29 ações públicas contra mais de 60 empresas de transporte coletivo da região metropolitana de Belo Horizonte. Os motivos: exploração da jornada profissional, fraude nos sistema de registro de ponto de cobradores e motoristas, más condições de infraestrutura e desrespeito a folgas e intervalos para refeição.
No caso mais grave, foi detectada jornada abusiva de trabalho associada a uma fraude, avaliada pelo MPT em R$ 100 milhões, no pagamento de horas extras a 42 mil motoristas e trocadores de 20 empresas da região metropolitana de Belo Horizonte, entre os anos de 2010 e 2014. Na denúncia apresentada à Justiça, a partir de uma investigação conjunta do MPT com os ministérios do Trabalho e da Previdência Social, é evidenciada uma manipulação do controle de jornada.
Na prática, auditores fiscais compararam dados colhidos no sistema de bilhetagem eletrônica do sistema de transporte coletivo, onde fica registrado o início e o final de cada turno, com o registro de jornada dos trabalhadores apresentado pelas empresas. “Havia uma diferença entre os dados da bilhetagem e os do cartão de ponto em desfavor dos funcionários. O primeiro sistema indicava uma jornada maior daquela registrada e paga pelos patrões”, denuncia o procurador regional do Trabalho Antônio Carlos Pereira.
“Ajuizamos 24 ações, e algumas delas já estão perto de ter uma sentença. Mas, em outros casos, as empresas obtiveram liminar, alegando não ser possível comparar os dois sistemas para averiguar a questão da jornada de trabalho. Elas querem barrar a fiscalização com a conferência da bilhetagem eletrônica”, lamenta Pereira.
De acordo com o procurador, a briga do órgão por melhores condições aos profissionais do sistema de transporte coletivo é um trabalho árduo nem sempre vitorioso. “Contratamos uma pesquisa junto à UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em 2013 para investigar a saúde de motoristas e cobradores. O resultado desse estudo veio confirmar uma situação muito grave, com cerca de um quarto da categoria afastada por questões de saúde ou acidente de trabalho”, relata. “São problemas mentais, osteomusculares e doenças crônicas, como diabetes e pressão arterial alta”, acrescenta, destacando a confirmação da surdez ocupacional entre motoristas de coletivos.
A partir da pesquisa, segundo o procurador, uma série de ações têm sido movidas contra as empresas de ônibus da região metropolitana da capital mineira, mas, apesar de em muitos casos elas admitirem as irregularidades, poucas medidas preventivas são adotadas.
Órgãos municipais e estaduais, rsponsáveis pela fiscalização, são omissos nessa situação gravíssima”, denuncia Pereira.
Do Jornal O Tempo
Reportagem: Murilo Rocha e Natália Oliveira
Fotografia e vídeo: Lincon Zarbietti
Fonte: Sindiloc-MG