Será que as novas tecnologias do setor de viagens invadirão nossa privacidade?

Reconhecimento facial digital. Aplicativos de rastreamento da covid-19. As inovações que tornam as viagens mais seguras durante a pandemia podem expor nossos dados pessoais

A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA no mundo das viagens, acelerada pela pandemia de covid-19, pode ser algo incrível, mas também poderá invadir a nossa privacidade. Aplicativos, reconhecimento facial e produtos inteligentes podem facilitar o tráfego aéreo e as passagens pelas fronteiras. Os recursos empregados atualmente para evitar filas e para que não seja necessário tocar em objetos podem ajudar a mantê-lo seguro contra vírus que podem causar doenças.

Novas tecnologias também são capazes de acelerar a retomada das viagens, como a colaboração do Fórum Econômico Mundial com o The Commons Project que criou a iniciativa CommonPass, cujo objetivo é permitir que os governos validem os testes de covid-19 dos cidadãos e, finalmente, suas respectivas credenciais de vacinação.

Mas essa inovação traz alguns riscos. Uma das histórias bastante conhecidas que pode servir de aprendizado sobre tecnologia de viagens e segurança de dados é a do ex-primeiro-ministro australiano, Tony Abbott, que recentemente publicou uma foto de seu cartão de embarque da Qantas Airlines em sua página do Instagram, e teve seu número de passaporte roubado por um hacker que escaneou o código que constava na imagem.

Cartões de embarque em papel são algo do passado. Mas eles ilustram que os invasores cibernéticos estão prontos para usar suas habilidades de varredura de HTML e mineração de dados para o bem ou para o mal. No caso de Abbott, o hacker expôs falhas de segurança para que as pessoas não compartilhem seus cartões de embarque e outros documentos confidenciais na internet. A companhia aérea reagiu atualizando os protocolos de segurança.

Ao retornarmos a um mundo repleto de novas tecnologias de viagens, como proteger nossas informações pessoais?

Tecnologia de reconhecimento facial

Singapura, sempre à frente da curva da tecnologia, anunciou que será o primeiro país do mundo a utilizar o reconhecimento facial em documentos de identidade emitidos pelo governo, a partir de setembro de 2020. Em 2023, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos espera já estar utilizando o reconhecimento facial em 97% dos passageiros.

A pandemia de covid-19 gerou novas tecnologias e também preocupações acerca de suas consequências. Em alguns países, os turistas são obrigados a baixar aplicativos de rastreamento de contato (Belize) ou utilizar um rastreador GPS (durante a quarentena em Hong Kong e, para alguns turistas, em Grenada). Por enquanto, localização e rastreamento pode ser o preço a ser pago para viajar durante a pandemia. Os aplicativos de rastreamento de contato mais seguros utilizam Bluetooth e não compartilham informações automaticamente com um banco de dados central. Mas em junho, a Anistia Internacional teceu críticas ao Bahrein, Kuwait e Noruega devido a seus aplicativos excessivamente invasivos, e ao Catar por uma falha de segurança que tornou as informações pessoais vulneráveis a hackers.

No Aeroporto Internacional Nikola Tesla de Belgrado, na Sérvia, autoridades utilizaram um scanner térmico para ajudar a monitorar possíveis casos de coronavírus que entraram no país em 2 de março de 2020. FOTO DE OLIVER BUNIC, BLOOMBERG/GETTY IMAGES
No Aeroporto Internacional Nikola Tesla de Belgrado, na Sérvia, autoridades utilizaram um scanner térmico para ajudar a monitorar possíveis casos de coronavírus que entraram no país em 2 de março de 2020. FOTO DE OLIVER BUNIC, BLOOMBERG/GETTY IMAGES

As implicações dos programas de reconhecimento facial para passageiros ainda não estão claras. Se privacidade é uma de suas preocupações, tome cuidado com o escaneamento e a gravação de suas informações. Nos aeroportos dos Estados Unidos, os passageiros podem cancelar a identificação biométrica na alfândega e em outros pontos de controle, mas é preciso solicitar esse procedimento, o que pode levá-lo a uma triagem adicional ou dar a entender que você tem algo a esconder, então talvez seja mais fácil apenas seguir o fluxo.

Embora possa parecer comprometedor que seu rosto — mesmo coberto por máscara — torne-se seu passaporte, seu cartão de embarque ou a entrada para o café da manhã gratuito do hotel, é válido nos perguntarmos se isso é mais invasivo do que outros cenários em que a tecnologia utiliza fotos para rastrear nossos movimentos e interesses. As imagens da Google já estão fazendo “um excelente trabalho ao reconhecer uma pessoa com base em suas fotos publicadas”, adverte Vinny Troia, hacker “ético” e CEO da empresa de avaliação de risco Night Lion Security. O Facebook, por exemplo, realiza uma busca de reconhecimento facial automática quando publicamos nossas fotos e sugere marcar as pessoas detectadas em cada imagem.

Essas não seriam invasões de privacidade inofensivas?

Embarcar em um avião com o simples movimento da tela do celular é algo futurista e conveniente. Robôs que fazem reservas de viagens e bancos de dados de hotéis, companhias aéreas e locadoras de carros podem ser úteis. Mas essa tecnologia possui maneiras de explorar e usar seus dados. Algumas delas são inofensivas: sua busca por uma casa de temporada nas praias da Carolina do Norte pode inundar suas redes sociais com anúncios de churrascarias locais.

O uso de aplicativos (Facebook, Tiktok, WeChat) expõe seus dados, que são “vendidos a terceiros para publicidade, modelagem de dados e usos futuros que nem sequer consideramos”, explica o advogado de privacidade e segurança de dados Mark McCreary. Devido aos dados fornecidos por passageiros, “as empresas conseguem modelar mais e prever a demanda de viagens, sua duração e o limite de preços. O uso de big data é um grande negócio na indústria de viagens”.

Uma passageira mostra seu código de saúde em seu celular enquanto realiza o check-in para um voo no Aeroporto Internacional de Pequim, na China, em 4 de julho de 2020. Alguns países estão implementando aplicativos de rastreamento de saúde na tentativa de oferecer mais segurança nas viagens de avião durante a pandemia, mas os defensores da privacidade estão preocupados com o risco de os passageiros exporem muitos dados pessoais.  FOTO DE HOU YU, CHINA NEWS SERVICE/GETTY IMAGES
Uma passageira mostra seu código de saúde em seu celular enquanto realiza o check-in para um voo no Aeroporto Internacional de Pequim, na China, em 4 de julho de 2020. Alguns países estão implementando aplicativos de rastreamento de saúde na tentativa de oferecer mais segurança nas viagens de avião durante a pandemia, mas os defensores da privacidade estão preocupados com o risco de os passageiros exporem muitos dados pessoais.
FOTO DE HOU YU, CHINA NEWS SERVICE/GETTY IMAGES

Se você não vê problemas em publicar uma selfie quando for acampar ou jantar em um restaurante daqui um tempo, se preocupar com as tecnologias no setor de viagens talvez não faça sentido. Minimizar os anúncios de viagens direcionados é fácil: basta apagar os cookies e o histórico de pesquisas, ou pesquisar voos e aluguel de carros em guias anônimas do seu navegador.

A boa notícia? “A maioria dos aplicativos de viagens de uso geral (por exemplo, reserva de acomodação e transporte, guias de cidades etc.) não apresentam tantos riscos de privacidade”, esclarece Dave Dean, fundador do Too Many Adapters, site que desmistifica tecnologias de viagens. Ele alerta que os aplicativos de redes sociais (Facebook, Instagram) costumam coletar dados mais confidenciais do que os de reserva de viagens, e que esses dados são utilizados de formas mais invasivas. “Ainda assim, a maioria das pessoas os utiliza diariamente sem grandes problemas”.

Violações de segurança mais graves

Ameaças mais preocupantes que anúncios indesejados ou escaneamentos faciais incluem invasores que utilizam as tecnologias do setor de viagens para invadir suas contas bancárias e cartões de crédito ou roubar sua identidade.

Os turistas costumam ir a lugares que não conhecem com frequência, distraem-se facilmente e ficam mais suscetíveis a serem vítimas de roubo físico ou ataques cibernéticos (podendo ter seu telefone ou computador invadido via wi-fi em um café de Moscou, por exemplo). As invasões digitais podem resultar em invasões menos óbvias, como ataques de sniffing (similar ao grampo telefônico), malwares e phishing.

Os cibercriminosos com frequência criam redes e sites que parecem legítimos para roubar seus nomes de usuário, senhas e contatos. Uma boa precaução é limitar o uso de wi-fi público, que “normalmente não é protegido e representa um alvo atraente para hackers”, segundo Attila Tomaschek, pesquisador do site de análise de ferramentas de privacidade ProPrivacy.

Paul Lipman, CEO da empresa de segurança cibernética BullGuard, recomenda o uso de dispositivos que “contenham apenas os dados de que você precisa para aquela viagem”, especialmente ao visitar países onde funcionários do governo têm o direito (ou predisposição) de acessar seus dispositivos.

A solução? Utilizar o mínimo necessário da tecnologia

A melhor solução pode ser levar apenas o essencial, tanto digital quanto fisicamente. Dean armazena o mínimo de informações possível em seus dispositivos, mantendo somente os aplicativos de que realmente precisa e negando regularmente as permissões de terceiros para a Google e o Facebook. Ele recomenda limitar o acesso dos aplicativos aos seus contatos e localização. “Não autorizo o acesso à localização (GPS) para qualquer aplicativo que não dependa disso para funcionar e mantenho os serviços de localização desligados quando não os estou utilizando para me localizar.”

Scott Keyes, fundador do site de tarifas aéreas baratas Scott’s Cheap Flights, recomenda que todas as telas de bloqueio e contas de seus dispositivos sejam protegidas por senhas seguras e únicas, outra sugestão é desinstalar ou desconectar aplicativos bancários antes de pegar a estrada. Certifique-se de atualizar seu software com os patches de segurança mais recentes. Não corra o risco de viajar sem adaptadores: levar os carregadores com a compatibilidade correta para seu destino de viagem (ou uma bateria recarregável) impede que você sofra um ataque cibernético (ou seja hackeado por meio de uma entrada USB pública).

Paul Mayers, executivo aposentado do governo canadense, diz que, quando visitava alguns países, “deixava tudo aquilo de que não precisaria em casa”. Todo o restante — celular, tablet, notas de reuniões — “era levado comigo sempre que eu saía do meu quarto de hotel”. Em alguns países, as operadoras estaduais podem e, de fato, recorrem à espionagem para obter vantagem competitiva, além de invadir cofres de hotéis para utilizar seu laptop e fazer um download rápido de suas informações ou instalar malwares de monitoramento.

De certa forma, isso tudo se parece com um filme de espionagem em que você, seus dados e sua capacidade de atenção se transformam em um produto altamente lucrativo. Mas cuidados simples podem ajudá-lo a desempenhar o papel de protagonista nesse cenário.

FONTE: NATIONAL GEOGRAPHIC

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