Frota de veículos para pessoas com deficiência: conclusão da pesquisa
Por João Grandino Rodas
Os artigos 51 e 52 da Lei 13.146/2015 e os artigos 3º e 4º do Decreto 9.762/2019, para constituir as frotas acessíveis de taxi e de locadoras de veículos a pessoas com deficiência (PcD), fixaram os percentuais de veículos a serem adaptados[1]. Os passos para apurar se esses percentuais estão adequados e se possuem base científica, são os seguintes: (i) apresentar questionamentos essenciais; (ii) levantar os dados necessários[2]; (iii) realizar reflexões; e (iv) apresentar conclusões.
Os questionamentos essenciais são os seguintes:
1) Se os percentuais acima expressam a realidade e correspondem à demanda das PcD, considerando os tipos e graus existentes?
2) Se o tempo necessário para a adaptação dos automóveis é compatível com as exigências legais?
3) Se há número suficiente de oficinas especializadas para adaptar automóveis, nos municípios, regiões e unidades federativas?
4) Se os custos de adaptação nos veículos impactariam na atividade de aluguel da frota total?
5) Se a política em tela contribuiria, realmente, para a inclusão de PcD?
Os tópicos a seguir relacionados podem servir de ponto de partida para reflexão e debate relativo ao assunto ora tratado.
1) O tratamento efetivo da inclusão pressupõe respeito às características de cada unidade da federação.
2) As políticas públicas devem estar embasadas em dados e percentagens reais e não em meras suposições.
3) Os percentuais fixados na Lei 13.146/2015 e no Decreto 9.762/2019 não refletem a realidade socioeconômica brasileira.
4) A demanda real é menor que a exigência legislativa.
5) Caráter personalíssimo das adaptações face às diversas classes e graus de comprometimento de deficiências físicas.
6) A legislação é discriminatória, em razão de não atender alguns tipos de deficiência.
7) As exigências legais aplicar-se-iam à frota atual ou apenas aos veículos a serem adquiridos após a vigência do decreto.
A sistematização e a análise dos dados coletados permitiram as conclusões a seguir. Constatou-se que os artigos 51 e 52 da Lei 13.146/2015; bem como os artigos 3º e 4º do Decreto 9.762/2019 não levaram em consideração a realidade brasileira, tendo sido, ademais, negligenciados os impactos regulatórios.
Tais aspectos fizeram com que a legislação se distanciasse da realidade socioeconômica brasileira, impactando negativamente o setor de locação de veículos e ensejando provável aumento do preço da locação de automóveis no Brasil.
As adaptações veiculares especificadas em lei são problemáticas; sendo exemplo clássico de “falha normativa”. Há, no imperativo legal, incongruências, como por exemplo, a exigência de veículos simultaneamente equipados com “câmbio automático” e “comando manual de embreagem”. Trata-se de incoerência de conteúdo, que excluiu a previsão de instalação de comandos manuais de aceleração, tornando assim os veículos inúteis ao público destinado. Esse grave aspecto, de ambiguidade do texto legal, foi levado ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ação direta de inconstitucionalidade, sob relatoria da Exma. Ministra Cármen Lúcia, objetivando retirar do mundo jurídico os artigos 51 e 52 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, afastando os seus efeitos[3].
Relatórios internacionais apontam que países com ambientes de negócios precários, rígidos, excessivamente burocráticos, hostis e desorganizados apresentam maior dificuldade em gerar impulsos sustentáveis ao crescimento econômico no atual cenário de uma economia global. Em razão disso, há necessidade de reformas, modernização, revisão e desburocratização, em especial de certos marcos regulatórios, que afetam os negócios. A má regulação, verificada no caso em análise, gera insegurança jurídica, especialmente no setor de locação de veículos.
Mais grave ainda, a legislação que se pretende inclusiva não trará reais benefícios ao grupo pretendido: às PcD. Dificilmente a grande maioria das PcD no Brasil será tocada por tais mudanças e beneficiada por essas vantagens.
Exigir das locadoras de veículos obrigações, manifestamente excessivas, elevará o preço dos serviços. É óbvio que tais custos sejam agregados no preço da locação e, por tal razão, o efeito imediato esperado é que todos os clientes de locadoras sejam onerados.
Da forma como está, se nada mudar, todos serão prejudicados: os clientes das locadoras; as locadoras de veículos e as pessoas com deficiência. Os clientes pagarão mais pelo mesmo serviço. As locadoras terão que investir milhões – até bilhões de reais – em adaptações em curto prazo, e sem qualquer perspectiva de financiamento público.
A grande maioria das PcD no Brasil, aproximadamente 75%, vive com renda inferior a dois salários mínimos e, seguramente, tais pessoas serão sumariamente excluídas de tal política. Vale lembrar que a diária de locação de veículo parte de R$ 250.
A norma favoreceria a quem? Do ponto de vista econômico e social, a norma beneficiaria somente 25% das pessoas com deficiência no Brasil, pois apenas elas teriam condições financeiras de locar veículos. Seria essa a inclusão pretendida?
A realidade social brasileira impede o acesso de PcD aos supostos benefícios da política pública em comento. Dados indicam que quatro, em cada dez brasileiros, não têm sequer conta bancária, quanto mais recursos para a locação de automóveis[4].
Observando-se os efeitos indesejados da norma em análise, além dos altos custos às locadoras para cumprir as determinações legais; assim como o consequente repasse dos valores da locação aos consumidores, tem-se que, em razão do excesso de ônus econômicos que a norma traz, compelindo as locadoras a aumentarem, de uma só vez, o estoque de automóveis adaptados, outro reflexo direto será a ociosidade de carros adaptados no pátio das locadoras. A baixa procura por tais veículos certamente ensejará prejuízos e desperdício de recursos privados. Note-se que a depreciação de um automóvel zero quilômetro, utilizando-o ou não, é superior a 20% do valor total do bem. Somem-se a isso os custos advindos do IPVA e de estacionamento do veículo.
Outro aspecto, mesmo que secundário, decorre do aumento do custo de locação de veículos a ser repassado ao consumidor final. Isso afastará consumidores que já se utilizam do serviço e impedirá o acesso de novos consumidores. A diminuição da demanda terá forte potencial de gerar demissões no setor que, diferentemente de outros, se encontra em pleno crescimento, gerando expressivo número de postos de trabalho.
A falta de efetividade da norma não é o único problema. Ademais, a legislação em apreço tenta transferir o ônus de propiciar mobilidade e transporte público acessíveis, passando importante incumbência do Estado para a iniciativa privada.
Um modelo moderno de proteção às pessoas com deficiência deve afastar falhas regulatórias. Uma alternativa seria buscar políticas públicas baseadas em dados reais ou, em um melhor cenário, conferir primazia à atuação eficiente por meio da utilização de mecanismos de mercado em que a lei da oferta e da procura regulasse o tema.
A notória falta de acessibilidade no sistema de transportes públicos e infraestrutura urbana no Brasil têm prejudicado toda a sociedade e, notadamente, as PcD. Percebe-se a tentativa de transferir ao setor privado a solução para a ausência de mobilidade. O próprio governo, em determinadas circunstâncias, não cumpre a legislação inclusiva e não consegue oferecer para as PcD um transporte público de qualidade, incentivando a compra de carros adaptados, com isenção de impostos.
O conjunto de dados examinados na pesquisa indica que o texto legislativo é ineficiente na tentativa de incluir PcD e não confere reais benefícios à minoria. Trata-se de iniciativa inócua, pois atinge e beneficia pequena parcela de PcD no Brasil.
A razão principal da presente pesquisa é fomentar os debates sobre o tema, uma vez que, inevitavelmente, ele estará na ordem do dia nos três poderes da República.
[1] Rodas, João Grandino, “Impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Decreto 9.762/2019”, Revista Eletrônica Conjur, 27 de junho de 2019.
[2] Rodas, João Grandino, “A frota ideal de veículos a serem locados para pessoas com deficiência” e “Dados complementares sobre veículos para pessoas com deficiência”, Revista Eletrônica Conjur, respectivamente, 25 de julho e 8 de agosto de 2019.
[3] ADI 5452. A Confederação Nacional do Transporte (CNT) questiona junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) dispositivo do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que obriga as locadoras a oferecer veículo adaptado para uso de deficientes a cada grupo de vinte automóveis de sua frota.
[4] http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2498:catid=28&Itemid=23
Fonte: Conjur
Infelizmente no Brasil, quem legisla não tem o menor conhecimento prático dos temas relacionados. Esses artigos promovem a transferência da obrigação legal e social do Estado Brasileiro em criar condições e soluções para a mobilidade do portador de deficiência, para a iniciativa privada. Em um momento em que o país precisa desburocratizar para incentivar o crescimento econômico e a geração de emprego, essa excessiva oneração da operação das locadoras brasileiras, me parece inoportuna e totalmente fora do contexto do país.