STF inova ao ratificar a tributação pelo ICMS na venda de ativo imobilizado
Recentemente foi julgado o Recurso Extraordinário nº 1.025.986, interposto pela empresa Localiza Rent a Car em face do Estado de Pernambuco, questionando a constitucionalidade da cobrança de ICMS quando a locadora vender veículos, regularmente registrados em seu ativo imobilizado e destinados à utilização na atividade locatícia, antes de transcorrido o prazo mínimo de 12 meses exigidos pelo Convênio ICMS nº 64/2006.
Entre outras razões, sustentou o contribuinte a inconstitucionalidade da limitação temporal imposta pelo convênio em questão, ratificado pelo Decreto nº 44.650/2017, editado pelo Estado de Pernambuco, além da impossibilidade de exigência do ICMS sobre operações que não envolvem mercadorias, mas genuínos bens que integram ao ativo imobilizado e efetivamente foram adquiridos e utilizados em finalidade alheia à mercancia (locação).
No julgamento do recurso, o Supremo Tribunal Federal inovou ao proferir o inusitado entendimento de que o ICMS seria exigível na revenda do ativo imobilizado, já que tais bens “perdem essa característica, passando a assumir o conceito de mercadoria, tornando-se, pois, bem móvel sujeito à mercancia, porque foi introduzido no processo circulatório econômico”, nos termos da divergência suscitada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Com isso, restou vencedora a seguinte tese em repercussão geral: é constitucional a incidência do ICMS sobre a operação de venda, realizada por locadora de veículos, de automóvel com menos de 12 meses de aquisição da montadora.
Em nossa opinião, o STF não só desconsiderou a farta jurisprudência já firmada por aquela corte em julgamentos pretéritos (vide RE nº 176.626/SP, relator o ministro Sepúlveda Pertence, DJ 11.12.1998; RE194.300/SP, relator o ministro Ilmar Galvão, DJ 12.9.1997; RE 182.721, relator o ministro Maurício Corrêa, DJ 27.02.1998; AI n. 835.104-AgR/RJ, relator o ministro Ayres Britto, DJe 19.3.2012), como autorizou um convênio celebrado no âmbito do Confaz a definir e impor restrições ao alcance da materialidade do ICMS para tributar ativo imobilizado como se mercadoria fosse.
Permitir a incidência do ICMS na venda de ativo imobilizado antes de 12 meses conduz à ideia de que somente consiste em ativo imobilizado aquele bem que, efetivamente, permaneça no estabelecimento pelo mencionado período mínimo dos 12 meses, o que contraria a doutrina, por sinal bem consolidada, além das normas contábeis aplicáveis.
De acordo com a Lei de S.A. (Lei nº 6.404/76), classificam-se como ativo imobilizado os “direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens”. Nas palavras de Fran Martins (Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 2010, p. 737), o termo ativo imobilizado “indica a inexistência, por parte da empresa, de intenção, à época da feitura do balanço geral, de transformar os seus bens em dinheiro”. Desse modo, enquanto os bens que integram o ativo imobilizado destinam-se a manter a própria fonte produtora de rendimentos, assim considerado àquelas constantes do objeto social da empresa (locação), os bens do ativo circulante representam dinheiro, créditos, ou bens que serão transformados em dinheiro durante o ciclo operacional, como a mercadoria (MELO, José Eduardo Soares de, 2020, p.32).
Paralelamente, destaque-se que a antiga NBC T 19.1, que previa como requisito para o registro de bens como ativo imobilizado a expectativa deles “serem utilizados por mais de 12 meses” foi revogada pela Resolução CFC nº 1.177 de 24.07.2009, que aprovou o atual CPC 27, que nada menciona sobre prazo mínimo. Muito pelo contrário, o atual CPC 27 não só prevê a possibilidade dos bens que integram ao ativo imobilizado serem vendidos, como ratifica esse cenário como venda de bens registrados no ativo não circulante, em hipótese prevista no “CPC 31 – Ativo Não Circulante Mantido para Venda e Operação Descontinuada”. Ou seja, a mera alienação de bem registrado no ativo não circulante, per se, não seria suficiente para impor a sua reclassificação às contas contábeis relativas aos “ativos circulantes”.
Por outro lado, somente é considerada mercadoria as “coisas que os empresários adquirem com a finalidade específica de revender”, segundo Fran Martins (Curso de Direito Comercial, 2011, p. 377). Convém ressaltar a expressão “finalidade específica de revender”, que, por óbvio, não coexiste com objeto social de uma locadora de veículos.
Diante disso, não se pode admitir que os veículos sejam mercadorias das locadoras, já que jamais foram adquiridos com o propósito de serem alienados, seja antes ou posterior ao prazo de 12 meses. Tampouco seriam equiparadas às “mercadorias usadas”, assim como ocorre em uma loja de veículos usados, já que, nessa hipótese, os veículos seriam adquiridos de particulares justamente com o propósito mercantil (posterior revenda), situação absolutamente diversa da enfrentada pelas locadoras de veículos.
Vale destacar que, para a manutenção da atividade econômica da locação, é fundamental a renovação constante da frota, sendo a “quilometragem” do veículo um dos aspectos primordiais a serem observados. A renovação da frota, além de contribuir com a manutenção de um determinado padrão de qualidade (carros novos tendem a aumentar a satisfação dos clientes e fomentar a geração de negócios), não objetiva o lucro nesta operação, já que o repasse do veículo teria por finalidade a aquisição de outro em melhores condições.
Diversamente de um maquinário na indústria, cuja vida útil possa ser estimada em tempo (meses/anos), a vida útil de um veículo automotor na atividade locatícia está intimamente ligada à quilometragem rodada, opondo dúvidas materiais sobre o critério introduzido pelo Convênio ICMS nº 64/2006.
Fato é que, independentemente do critério exigido, o STF acabou por ratificar, formalmente, norma instituída por convênio que equiparou à mercadoria usada a venda de bem que integra o ativo imobilizado antes do período de 12 meses, pelo simples fato de ter havido sua reintrodução no processo circulatório econômico. Certamente, tal precedente poderá ser amplamente utilizado pelos Fiscos estaduais para respaldar a cobrança pelo ICMS sobre toda e qualquer operação de venda de ativo imobilizado que tenha sido objeto de transação em prazo inferior aos 12, ainda que não seja veículo automotor, causando incertezas e insegurança jurídica sobre tudo que se sabia até então.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-ago-30/paulo-calhao-stf-venda-ativo-imobilizado