Defeito em carros pode ser considerado dano moral
Após vários anos na Justiça, alguns proprietários conseguem ganhar causa.
Especialistas advertem que é 1º é preciso comprovar defeito com perícia.
A batalha, no entanto, é longa: os casos que tiveram ganho de causa no STJ levaram anos para terem uma conclusão. Em uma delas, foram 17 anos nos tribunais. E cabe a quem entrou com a ação ela provar tanto a falha, com perícia, quanto os transtornos que isso provocou.
Para especialistas em direito do consumidor ouvidos pelo G1, as decisões do STJ poderão abrir um precedente que os advogados chamam de jurisprudência, ou seja, um conjunto de decisões para servir de “guia” aos próximos processos sobre o mesmo tema. Mas trata-se ainda de um tema muito novo: decisões sobre danos morais são recentes no país.
“Essas decisões são baseadas no Código de Defesa do Consumidor, que já é uma lei de aplicação bem sucedida”, explica Luciano Godoy, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “No caso dos veículos, percebemos que o volume de processos está aumentando, até mesmo pelo crescimento das vendas e da tecnologia nos carros, que os deixa mais suscetíveis a falhas.”
Ferrugem no carro
A empresária Inge Tittel, de 55 anos, esperou 17 anos por uma decisão favorável na Justiça, desde que encontrou ferrugem em diversas partes de um Chevrolet Corsa 0 km.
“Cerca de 2 meses depois de tirar o carro novo da concessionária, levei para lavar no posto, e o rapaz que fazia a secagem me chamou a atenção para pontos de ferrugem. Levei a um mecânico de confiança, e ele suspendeu o carro. Tinha problema sério de ferrugem em tudo”, descreve Inge.
No processo, que chegou ao STJ, a Chevrolet alegou que “as peças alcançadas pelo ferrugem são ínfimas e de pouco destaque no veículo” e sugeriu que fosse feito o reparo nas chapas. No entanto, dois laudos, um deles feito por perito indicado por juiz, concluíram que um reparo não garantiria que a ferrugem fosse totalmente eliminada e que o problema provocaria depreciação do veículo caso a proprietária quisesse vendê-lo.
“Sabia que ia demorar porque a Justiça permite diversos recursos, mas persisiti. A maioria das pessoas desiste e passa ao carro adiante. O meu ficou na garagem todo este tempo e tive de comprar outro para usar, enquanto aguardava a decisão. E quem não pode fazer isso?”, questiona Inge. “Quem compra um carro 0 km não está querendo um problema. O prejuízo não é só financeiro.”
Procurada pelo G1, a Chevrolet não quis comentar o caso.
Neste e nos demais casos relatados abaixo, as indenizações ainda não foram pagas porque, após a orientação do STJ, os processos voltam aos tribunais de origem para execução da pena.
Airbag que não abriu
Em um dia chuvoso de 2002, o advogado Marcos Sávio Zanella sofreu um acidente com um Citroën Xsara Sport, em Rio do Sul (SC). A colisão frontal com uma betoneira que cruzou a pista na transversal deu “perda total” no sedã. O airbag não abriu: “Eu lembro bem de ver um caminhão na minha frente. Só acordei 2 horas depois no hospital”, afirmou Zanella, que teve traumas na cabeça e na mandíbula, além de cortes superficiais no rosto.
Para saber se era mesmo um defeito do veículo, Zanella pediu uma perícia a um engenheiro.
Com o laudo em mãos, processou a Citroën por danos morais por acreditar ter sido enganado pela fabricante, com relação ao nível de segurança do veículo, conforme o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor, que diz que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera.”
No momento da compra, o nível de segurança do Xsara foi um fator de peso na escolha, diz o advogado. O modelo tinha 4 airbags, um luxo na época, em 2001.
No processo, Zanella até anexou a capa de uma revista especializada, dizendo que o modelo era a melhor opção na categoria por causa da segurança.
Em primeira e segunda instâncias, os tribunais reconheceram a falha no airbag, mas não concederam indenização por danos morais. Eles entenderam que as lesões foram leves e não deixaram sequelas no motorista.
Zanella entrou com recurso no STJ e, em julho passado, o tribunal determinou indenização por danos morais, que deve ficar em torno de duas vezes o valor do carro – na época, cerca de R$ 30 mil – acrescido de correção monetária.
A Citroën acatou a decisão, mas informou em nota que “não teve acesso ao veículo em questão para a realização de perícia técnica”. E que, desta forma, “fica impossibilitada de emitir um relatório conclusivo sobre o fato”.
A fabricante ressaltou que o modelo Xsara, produzido entre 1997 e 2003, teve mais de 2 milhões de unidades vendidas em todo o mundo, e “sempre foi referência mundial de segurança em seu segmento, não sendo constatadas irregularidades no funcionamento de seu sistema de airbag.”
Outro caso de airbag
Na decisão que definiu o pagamento de danos morais no caso do Citroën, o STJ citou um outro caso de não abertura no airbag, desta vez contra a Renault. Ele ocorreu em 2001, quando um Scénic colidiu de frente com um caminhão, em Curitiba (PR). Conforme consta no processo, o airbag não abriu e o motorista sofreu cortes no rosto e lesões no ombro e cotovelo.
À Justiça, o proprietário levou um panfleto de propaganda da montadora que dizia: “Você já sabe que, nos carros da Renault, segurança não é opcional”, descrevendo o funcionamento das bolsas infláveis frontais.
O caso também foi parar no STJ, que, em 2014, entendeu que a fabricante teve responsabilidade “pelo abalo psíquico sofrido pelos recorrentes, decorrente do defeito do produto” porque, com base na descrição do veículo, o consumidor esperava um carro seguro. A indenização por dano moral deve girar em torno de R$ 30 mil.
A Renault informou ao G1 que a dinâmica do choque “não foi suficiente para o acionamento dos airbags” e que a afirmação do perito “carece de elementos factuais”.
Afirmou também que não foi possível saber se a manutenção do veículo era feita regularmente e se houve alguma alteração não recomendada na parte elétrica, para instalação de acessórios por exemplo. Segundo a Renault, um scanner eletrônico pode atestar o bom funcionamento dos componentes, incluindo o airbag.
Cadê o meu motor?
No Paraná, um empresário, que não quis ter o nome divulgado, descobriu um problema com sua Ford Ranger quando foi vendê-la, em 2005. Na hora da transferência, a picape não passou na vistoria do Detran porque o número do motor não batia com a documentação.
A concessionária onde o veículo foi comprado, 0 km, em 2001, acusou o proprietário de ter trocado o propulsor, mas ele disse que nunca mexeu nele. A venda foi cancelada e o proprietário ainda teve de se explicar.
“O comprador falou que eu tentei enganá-lo, que eu sabia que não ia passar na vistoria. E ele já tinha passado o carro para uma terceira pessoa, por um valor superior ao que eu vendi. Tive de devolver o dinheiro e ainda pagar o valor a mais a ele”, relatou.
No final do ano passado, o STJ confirmou indenização por dano moral de R$ 5 mil ao proprietário, que foi obrigado a manter a Ranger em sua posse. Em contato com o G1, a Ford afirmou que não comenta processos em andamento.
Vai virar tendência?
De acordo com Godoy, da Escola de Direito da FGV-SP, as indenizações por danos morais têm sido determinadas porque o consumidor acredita na informação dada pelo fabricante, já que não tem meios de checar se aquilo realmente funciona. “O consumidor se sente traído”, diz ele.
O especialista de direito do consumidor Vinicius Zwarg concorda que as decisões recentes podem servir de guias para processos semelhantes, mas alerta que, com a lentidão dos tribunais brasileiros, essa jurisprudência pode demorar décadas para ser construída. E ela também pode mudar ao longo dos anos, conforme as interpretações, diz ele.
“Indenização por dano moral é razoavelmente recente no Brasil. É natural que a construção da jurisprudência seja lenta, porque precisa de uma série de decisões, sedimentando ao longo dos anos. Com relação a planos de saúde, por exemplo, até pouco tempo atrás o não atendimento não gerava dano moral, mas agora em muitos casos é possível”, afirma Zwarg.
Em casos julgados, relacionados a carros, as indenizações por danos morais partiram de “simbólicos” R$ 2 mil e chegaram perto de R$ 200 mil, como no caso da morte do cantor João Paulo, que sofreu um acidente com um BMW Série 3, em 1997 – um caso ainda está em disputa judicial.
“O valor é proporcional ao desconforto. O pagamento tem mais caráter de punição para quem paga do que de enriquecimento para quem recebe. Para ver se a empresa é mais cuidadosa da próxima vez”, diz Godoy.
Necessidade de provas
Diferentemente do dano material e estético (cicatrizes e perda de membros), que têm critérios objetivos, o dano moral pode estar relacionado a dor, angústia, nervosismo e preocupação, mas precisa ser provado pela vítima.
“Não basta ser alegado, tem que ser demostrado. Por exemplo, quem opta por um carro com mais airbags está primando pela segurança, então o não funcionamento pode acarretar em dano moral. Se o médico recomendar remédio para se acalmar, também é uma prova que houve dano moral”, explica Zwarg.
Antes de tentar provar o dano moral, é preciso verificar se realmente houve falha no automóvel.
Zwarg aconselha fazer um laudo preliminar com um engenheiro. Durante o processo, um outro perito deve ser designado pelo juiz para confirmar a avaliação inicial.
No caso de dano material, o Código de Defesa do Consumidor inverte o ônus das provas, ou seja, quem tem que provar que o carro não tinha defeito é a fabricante, concessionária ou importadora.
“Se falar que o carro está com problema da suspensão, a fabrica precisa provar que não está ou então que o consumidor fez alguma coisa errada, gerando o problema”, explica Godoy.
Fonte: Auto Esporte