Ninguém empresta carro

 

“Não há como esquecer que mineiro é um ser desconfiado por excelência. Jura que, se emprestar o carro, ele retornará lanhado e que não será avisado dos arranhões. Terá que descobrir sozinho.”

 

Lá no sul, é natural se emprestar carro. Já usei o da mãe e dos meus irmãos, deixei o meu com amigo durante um mês enquanto viajava. Já em Minas, não é bem assim. Mineiro empresta furadeira, colchão, abajur, até mesa de jantar para alguma festa, mas carro, jamais.

Nem tente propor a um confidente ou parente, ele achará absurdo. Um pedido descabido. Um insulto. Vim de sangue doce e me estrepei. Quando meu Santa Fe teve que ficar na oficina por uma semana, pensei em solicitar o auto das tias ou dos primos da Beatriz.

Ela guilhotinou o assunto: “Não ouse! Nem ouse!”.

Foi com tanta determinação a negativa que nunca mais cometi reincidência. A atitude, se levada a cabo, poderia me transformar em proscrito da parentada dela.

A solidariedade só acontece dentro da pequena família, na figura da esposa e do marido e dos filhos, no alcance da residência. Ainda nesses casos, predomina uma incômoda contrariedade. Para admitir o passeio de alguém de seu lar, o desavisado recebe um amontoado de instruções, com o claro objetivo de gerar culpa e talvez desistência – “cuidado com a marcha, ela é mais dura; não estacione na rua; o vidro do carona demora a fechar”. Parece que o familiar regride ao psicotécnico da autoescola. O empréstimo nunca sai barato, sem uma lição de moral.

Nem é questão de avareza ou de egoísmo, a difícil cedência manifesta um orgulho da própria personalidade.

Na concepção mineira, carro não é um transporte, porém um espaço doméstico. Um bem muito pessoal. Traz a cara e o jeito do seu dono. Tem a organização mental de um escritório ou a bagunça de um quarto. Desfrutar de seu interior é o equivalente a ler o diário alheio, acessar a intimidade mais preciosa.

Carro é carro-forte. Nem chegue perto.

Não sei se por ser “o Estado da Fiat”, virou um item indispensável. Cada um tem o seu e não se fala mais disso. É como pedir um apartamento para morar de graça. Provoca explosiva indisposição.

Talvez, por igual motivo, Minas seja a terra onde mais se percebe saída de automóveis para alugar, onde as locadoras encontram invejável prosperidade. No país inteiro, placa de BH tornou-se sinônimo de locação.

Na média nacional, Belo Horizonte é a capital brasileira com mais veículos por habitante, com um para cada 1,76 morador da cidade. A questão é que existe um valor emocional que impede o usufruto com o mais próximo. Ocorre uma simbiose entre o carro e o seu motorista, de tal maneira que se tornam um único material anímico.

São desculpas infinitas que não permitem o desapego. Na hipótese do carro zero, vem o medo de aleijar o recém-nascido. Na hipótese de um carro antigo, experimenta-se o pudor de ele enguiçar e não localizar mais peças para a reposição.

Não há como esquecer que mineiro é um ser desconfiado por excelência. Jura que, se emprestar o carro, ele retornará lanhado e que não será avisado dos arranhões. Terá que descobrir sozinho. É capaz de desvendar um risco na lataria que ele mesmo fez e colocar a culpa no outro.

Assim como igualmente ele sofre para cobrar algo importante de volta, abomina enfrentar o purgatório da espera. Se emprestou o carro para três dias, no primeiro dia está arrependido e ensaiando o discurso no espelho para reaver o seu companheiro de garagem. Pensa que o pior vai acontecer. Fica andando em círculos na conversa para desfazer o negócio.

Não há como apagar também a visão de que mineiro acredita piamente que todos dirigem mal, menos ele.

Fonte: O Tempo

Por Fabrício Carpinejar

plugins premium WordPress
Receba as últimas notícias

Assine a nossa news gratuitamente.
Mantenha-se atualizado com
as notícias mais relevantes diretamente em seu e-mail.