Proposta indecorosa
A indústria automobilística instalada no Brasil é uma das mais protegidas do mundo. Cercada por barreiras comerciais, tem sido há muito tempo um dos setores mais favorecidos pelas políticas oficiais. Vendeu sem dificuldade, nos últimos anos, graças a incentivos fiscais ao consumo e a esquemas generosos de financiamento. Acordos com o governo em tempos de crise – ou de risco de crise – têm sido tradicionais. Nenhum outro setor tem recebido tantas facilidades para a manutenção de lucros e a preservação de empregos.
Protegida e cevada pelos favores oficiais, essa indústria tem feito muito menos do que poderia – e deveria – para adotar padrões de qualidade e segurança similares àqueles mantidos em países com economias mais abertas e mais competitivas. Até há pouco tempo as montadoras se opuseram à instalação de airbags e freios ABS em todos os modelos.
Por essas e outras razões, é um despropósito a comparação com a indústria alemã – ou com qualquer outra exposta à concorrência internacional e comprometida com a eficiência e a qualidade. Os dirigentes do setor, no Brasil, há muito se acomodaram na mediocridade de um comércio exterior restrito e desambicioso. As vendas são concentradas na Argentina (80% das exportações de veículos) e em poucos mercados da vizinhança. Ao mesmo tempo, a concorrência internacional no mercado interno é limitada por barreiras muito altas.
Com a economia argentina em crise e o comércio bilateral submetido a regras formuladas na Casa Rosada, as vendas para o segundo maior mercado do Mercosul diminuíram muito. Essa é a principal explicação do encolhimento das exportações, 32,7% menores, de janeiro a março, do que no primeiro trimestre do ano anterior.
A referência ao esquema alemão de socorro às empresas e de manutenção de emprego é quase uma brincadeira infeliz. A indústria alemã é referência global de produtividade e de qualidade. Crise nas montadoras alemãs é normalmente reflexo de problemas sérios em seus principais mercados. Não é consequência de baixo investimento, qualidade insatisfatória e produtividade inferior à dos principais concorrentes.
Nem todos os problemas da indústria brasileira – automobilística ou de outros setores – têm origem nas empresas. O baixo poder de competição da maior parte delas é explicável em boa parte por um mau ambiente de negócios. Os tributos são excessivos e mal concebidos, a burocracia é sufocante, as regras do jogo são incertas, os custos logísticos são absurdos, a mão de obra qualificada é escassa e a interferência governamental é desastrosa. Mas é preciso reconhecer a cumplicidade de parte do setor privado.
Certos empresários batalham muito mais por protecionismo e favores do que por medidas para elevar a produtividade e a competitividade. Acomodam-se, como se acomodaram as montadoras, no comércio medíocre com a Argentina e alguns vizinhos. No caso do setor automobilístico, ninguém se queixou enquanto os incentivos ajudaram a desovar a produção e a manter o emprego. As queixas e a nova proposta indecorosa compõem um roteiro conhecido. E ninguém fica ruborizado ao fazer a comparação com a indústria alemã.
Acostumados a empurrar seus problemas para o governo, empresários e sindicalistas do setor automobilístico tentam mais uma vez sangrar o setor público para compensar a ineficiência e o baixo poder de competição das empresas. A proposta indecorosa, desta vez, é usar dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para pagar durante até dois anos parte do salário de empregados com jornada reduzida. Para justificar o corte das horas de trabalho e a nova proposta, os porta-vozes da indústria e dos sindicatos mencionam a diminuição das exportações, a redução das vendas no mercado interno, a acumulação de estoques e o freio na produção. O esquema de proteção do emprego, argumentam, seria similar ao usado na Alemanha há muitos anos. Mal contada desde o início, essa história desanda de forma irrecuperável quando aparece a desavergonhada referência ao exemplo alemão.
Do O Estado de S.Paulo