Vítimas da violência e da morosidade
Demora da Justiça amplia dor de mães de jovens mortos em acidentes nas ruas, enquanto impunidade cerca motoristas envolvidos
A cada 15 dias, a sala do Instituto Paz no Trânsito (IPTran), no bairro Alto da XV, em Curitiba, reúne duas dezenas de mães e pais que perderam filhos em ocorrências de trânsito. Entre lágrimas, compartilham suas dores. É a maneira que têm para reunir forças e seguir adiante. Os episódios que ceifaram as vidas de seus entes não foram meros acidentes, mas crimes de trânsito: os motoristas estavam alcoolizados, dirigiam em alta velocidade ou furaram sinais ou preferenciais. Dos 20 casos acompanhados pela entidade, nenhum foi julgado. Dois deles nem sequer tiveram as investigações concluídas.
INFOGRÁFICO: Relembre outros acidentes de trânsito que ocorreram em Curitiba
Ontem, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) decide se o ex-deputado Luiz Fernando Ribas Carli Filho será julgado por homicídio com dolo eventual (quando o agente assumiu o risco de cometer o delito) ou por homicídio culposo (sem intenção). Cinco anos atrás, ele dirigia o Passat que atingiu um Honda Fit, matando dois jovens. As investigações revelaram que Carli Filho havia ingerido álcool, dirigia com a habilitação suspensa e a uma velocidade entre 161 e 173 km/h.
Christiane Yared: “Nos sentimos como se a Justiça não se importasse conosco”
A Gazeta do Povo listou dez desastres ocorridos nos últimos cinco anos (veja a relação abaixo). Nenhum deles transitou em julgado. Apenas dois réus foram julgados – e condenados a menos de quatro anos de detenção – em primeira instância, mas as decisões estão sob recurso. Para as mães das vítimas, a morosidade da Justiça se traduz em uma sensação de impunidade.
“Fica o sentimento de que a pessoa pode pegar um carro, matar o outro, destruir uma família e não vai ser punido. Nós, mães, nos sentimos como se a Justiça não se importasse conosco”, define Christiane Yared, fundadora do IPTran. O filho dela, Gilmar Rafael Yared, é um dos jovens mortos no acidente que envolveu Carli Filho.
A maioria das vidas perdidas para a combinação nefasta entre álcool e direção é formada por vítimas jovens, que tiveram seus sonhos abreviados em uma esquina qualquer. A banalização de crimes de trânsito impressiona até quem é acostumado a lidar cotidianamente com a violência.
“Esses casos chocam pela maneira estúpida como vidas são desperdiçadas. Estamos acostumados a ver mortes em confronto, em assalto, onde há bandidos. Esses acidentes são estupidez, que, de uma hora para outra, acabam com famílias”, disse o delegado Rodrigo Brown de Oliveira, chefe da Delegacia de Delitos de Trânsito de Curitiba.
Para o advogado Elias Mattar Assad, a demora na punição dos motoristas infratores está atrelada a uma conta que não fecha: acontecem mais casos do que a polícia consegue investigar e do que a Justiça é capaz de julgar.
Justiça decide hoje se Carli Filho vai a júri popular
Amanda Audi
Pela segunda vez, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) pode decidir que o ex-deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho seja julgado pelo júri popular. A primeira decisão do tribunal ocorreu em 2011, após recurso impetrado pela defesa do ex-deputado na época, que questionou a decisão do juiz da 2.ª Vara do Júri de Curitiba, Daniel Surdi de Avelar.
Em novembro de 2011, no entanto, acatando um pedido da defesa do ex-parlamentar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o recurso fosse julgado novamente pelo TJ. A defesa do ex-deputado, na época, argumentou que o recurso de 2.º grau no TJ foi julgado pelo juiz substituto Naor Ribeiro de Macedo Neto, que substituía o desembargador Telmo Cherem – juiz “natural” do caso. No entanto, o processo teria sido distribuído um dia depois do fim do período de substituição, o que implicaria que o caso fosse distribuído já para Cherem.
Se a decisão nesta quinta for pelo Tribunal do Júri, Carli Filho deve responder por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar). Caso a opção seja reformada, ele deve ser julgado pela Vara Comum de trânsito como homicídio culposo (sem intenção de matar). A pena de Carli Filho pode passar de 12 a 30 anos (dolo eventual) para no máximo 4 anos em regime semiaberto (culposo).
O TJ também vai analisar se insere ou não nos autos do processo o exame de alcoolemia feito no hospital enquanto Carli Filho estava desacordado. O exame teria apontado que o ex-deputado estava embriagado na hora do acidente, mas acabou sendo tirado do processo por alegação de que foi colhido sem autorização.
O advogado René Dotti, que faz a defesa de Carli Filho, diz que o ex-deputado deveria ser julgado por crime de trânsito. “Foi uma tragédia lamentável e ele [Carli Filho] teve muitos sofrimentos, não só os machucados no corpo e a perda do mandato. Ele jamais dirigiu o carro com a intenção de matar alguém”, afirma.
Inquérito
Investigação sobre acidente na Régis vai se estender
Rafael Waltrick
Quase dois meses após o acidente com um ônibus da Viação Nossa Senhora da Penha na Rodovia Régis Bittencourt, que deixou 15 mortos e 33 pessoas feridas, ainda não há prazo para a polícia concluir o inquérito que apura as causas da tragédia. O ônibus, que saiu de Curitiba rumo ao Rio de Janeiro, tombou em uma ribanceira.
A Polícia Civil de São Lourenço da Serra, que investiga o caso, aguarda a conclusão do exame toxicológico do motorista e também a análise do tacógrafo do veículo. O maior impedimento para a investigação seguir, porém, são as respostas às mais de 30 cartas precatórias enviadas para as delegacias dos municípios em que as vítimas residem. A carta precatória é uma espécie de pedido de cooperação aos policiais locais, que devem procurar as testemunhas para fazer perguntas pré-definidas pelo delegado responsável pelo inquérito.
“Essa é de fato a parte mais demorada. Agora dependo da destreza e da disponibilidade dos policiais nessas cidades”, afirma o delegado responsável pela investigação, Flávio Luiz Teixeira.
A Polícia Civil já indiciou o motorista do ônibus, Oseas dos Santos Gomes, por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) e lesão corporal – a principal hipótese, até o momento, é de que ele teria dormido ao volante. A Penha foi procurada pela reportagem, mas não comentou o andamento da investigação.
Colaborou Diego Ribeiro.
Legislação
Veja quais as diferenças na hora de tratar uma morte no trânsito como homicídio culposo ou doloso:
Homicídio culposo
Previsto no Código Brasileiro de Trânsito, é caracterizado quando o condutor não teve a intenção de matar. É causado por negligência, imprudência ou imperícia do motorista.
Pena: detenção de dois a quatro anos; suspensão da habilitação.
Homicídio doloso ou dolo eventual
Previsto no Código Penal, se aplica quando o motorista que provocou o acidente dirigiu em condições em que assumiu a possibilidade de provocar a morte no trânsito (dolo eventual).
Pena: reclusão de seis a 20 anos.
Legislação
Especialista defende definição de crime intermediário
Nos debates acerca das alterações no Código Penal que tramitam no Senado, um diz respeito diretamente aos delitos de trânsito: a criação de um tipo penal definido como homicídio com “culpa gravíssima”. Na prática, funcionaria como um intermediário entre o homicídio culposo e o doloso ou com dolo eventual. Segundo o projeto, a “culpa gravíssima” se caracterizaria “se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado morte, nem assumiu os riscos, mas agiu com excepcional temeridade”.
Para o presidente da Comissão de Direitos de Trânsito, da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR), Marcelo Araújo, a alteração traria mais justiça à aplicação da lei e a punição dos infratores. “Hoje, ou é oito ou é oitenta. As punições previstas são desproporcionais para casos extremos. Você pune da mesma forma, por exemplo, um motorista que tenha participado bêbado de um racha, quanto um que tenha se envolvido num acidente”, avalia.
Dor
Mães de vítimas clamam por Justiça
Na casa simples, no bairro Umbará, em Curitiba, para onde quer se olhe, há um foto da sorridente Jennifer de Melo Brito. No feriado de 15 de novembro de 2011, a menina — que contava 12 anos — saiu na garupa da moto de Robson Luiz da Silva, de 26 anos, para comprar uma pizza. Sequer chegaram à pizzaria. No meio do caminho, foram atingidos por um carro que disputava um racha. Morreram na hora. “Acidentes acontecem. Mas o que matou minha filha não foi um acidente: foi um crime”, define a mãe de Jennifer, Roseli de Melo.
O motorista que dirigia o carro nunca chegou a ser preso. A falta de punição aumenta a angústia da família e amplia a sensação de vazio. Chega a provocar um certo desejo amargo de vingança e, não raramente, leva dona Roseli às lágrimas. “É dolorido demais. Você vê o assassino da sua filha solto e, pior, dirigindo, indo para a balada. Eu queria que ele pagasse. Não traria minha filha de volta, mas, pelo menos, seria feita Justiça”, diz.
A sensação é a mesma da promotora de vendas Isabel Cristina Jaques Ricardo. Em uma noite de novembro de 2009, ela comprou dois cachorros-quentes e esperou o filho, Marlon Francis Ricardo, então com 19 anos, voltar para casa. O rapaz, que havia saído para entregar o diploma no hospital onde começaria a trabalhar na semana seguinte, nunca retornou. A moto dele foi atingida por um carro em alta velocidade, que cruzou a preferencial. O automóvel era dirigido por Eduardo Martinez de Andrade, sobrinho de um ex-deputado. “Eu tinha falado para ele não sair de moto. Eu pressenti”, conta a mãe.
Apesar de o acidente ter ocorrido há mais de quatro anos, o caso está “parado”. Isabel sequer tem informações sobre a tramitação do processo. Enquanto isso, ela lamenta o fato de o condutor do carro que atropelou Marlon continuar dirigindo. “Não recebi nem um ‘lamento muito’. E ele [o motorista] esta aí, dirigindo. Pessoas usam carros como se fossem armas e não acontece nada”, lamenta.
Fonte: Gazeta do Povo