A indústria automotiva precisa ser um plano de desenvolvimento do País. Não do governo
Executivo defende regras mais claras para o setor e melhorias no processo de exportação. O ‘custo Brasil’, segundo ele, tira o apelo do que é produzido aqui e prejudica nossa competividade em âmbito global.
À frente da Nissan no Brasil desde 2017, Marco Silva enfrenta um dos principais desafios da carreira: conduzir as operações da montadora japonesa em meio à pandemia. Após registrar queda de 36% nas vendas em 2020, a empresa trabalha com previsão de alta de até 25% em 2021, puxada por um crescimento de 15% na produção total do mercado nacional – estimada em 2,3 milhões de automóveis. O executivo, no entanto, não esconde a frustração com as deficiências do País no processo de exportação. “Os problemas vão desde o aspecto burocrático até o tributário”, afirmou.
DINHEIRO – O Brasil iniciou 2020 com a previsão de produzir 3,2 milhões de automóveis, mas fechou o ano com cerca de 2 milhões. Qual a análise da Nissan sobre esse período?
MARCO SILVA – Foi muito atípico. Para a Nissan, para a indústria automobilística, para a economia, para o mundo. Nosso planejamento estratégico geralmente pega o nosso ano fiscal, que começa em abril e termina em março. Já tínhamos o orçamento pronto. E refizemos tudo praticamente duas vezes, porque havia uma incerteza muito grande.
Quais os reflexos disso?
Quando olho para 2020, vejo que conseguimos restituir a condição que tínhamos antes da pandemia, com volumes menores e uma estrutura mais enxuta. Até porque a gente sabia das oscilações que viriam do segundo semestre e de uma demanda reprimida dos meses em que a indústria ficou parada. Estamos muito mais preparados para 2021.
Os especialistas falam em aumento de inflação, juros, desemprego… O sr. acredita que o mercado seguirá em retomada?
Quando comparo o ano todo, ano contra ano (2021 a 2020), acredito que a indústria irá produzir por volta de 2,3 milhões a 2,4 milhões de unidades, crescimento de uns 15%. Mas existe muita volatilidade no mercado, variáveis que não estão definidas. Desde a expectativa pelas reformas (tributária e administrativa, por exemplo) até a desvalorização do real, ou um potencial aumento da inflação. E saber como a economia vai reagir em meio a uma possível segunda onda da Covid-19, mas com a esperança da vacinação.
A Nissan está preparada?
Enxugamos a estrutura para poder dar frente, independentemente se há um crescimento da indústria de 15%, 20%, se ocorrer uma queda ainda mais abrupta ou uma manutenção do volume que tivemos em 2020. Prevemos crescer entre 20% e 25% em 2021. Em 2019, o mercado brasileiro foi de mais ou menos 2,7 milhões. Não vejo o ritmo voltando ao nível pré-pandemia antes de 2022.
A desvalorização do real, de cerca de 40% em um ano, pressiona os custos no Brasil para a importação de componentes. Ao mesmo tempo, é uma aliada na exportação.
Sentimos no começo uma pressão enorme com relação aos nossos custos. Impactou também nossos fornecedores e, consequentemente, no preço dos veículos. Já as exportações estão indo muito bem. Temos a Argentina como parceiro principal, apesar da queda recente nas vendas. Outro ponto importante é que abrimos a oportunidade de estudo de novos mercados, oito países da América do Sul e outros da América Central e da América Latina. Até março vamos concluir. Porque o Brasil acabou se tornando muito competitivo quando a gente transforma todo o nosso custo em real em dólar. E estamos tentando capturar essa oportunidade como potencial suporte ao nosso negócio futuro.
Como o sr. analisa a concorrência na indústria automobilística brasileira?
Estamos com uma capacidade de produção de 5 milhões de carros por ano, mas temos uma indústria local com 2 milhões de unidades, mais exportações. A ociosidade é de 40%. Quando você coloca isso nesse mercado, o Brasil acaba sendo batido, porque está passando por um momento de muita transformação, na qual ou nós nos reinventamos ou desaparecemos.
Por quê?
Porque precisamos ter o nosso nível de eficiência. O Brasil tem de ser eficiente para o caso de, vamos supor, se o mercado cair, eu perguntar: posso exportar? Sim. Mas há uma série de deficiências no nosso sistema de exportação. E é o que faz com que a indústria automobilística no Brasil não seja competitiva em comparacão a vários mercados.
Pode dar um exemplo?
O México, que tem um custo de produção muito mais baixo. Somos os líderes no mercado mexicano com uma produção na casa de 800 mil, 1 milhão de unidades por ano. Vejo o mercado brasileiro sob pressão e não somos eficientes o suficiente na exportação. E todo mundo está vendo onde existem oportunidades para se reinventar.
Quais são as deficiências no processo de exportação?
Os problemas vão desde o aspecto burocrático, de uma série de coisas que nós temos que pagar, ao tributário. Nossa legislação é passada. Não pensa no exportador. Hoje, exportamos impostos.
E a consequência disso…
Somos uma indústria de capital pesado. Temos que fazer investimentos muito altos para inventar um produto, sem ter a certeza de um retorno garantido. As nossas matrizes têm olhado com detalhe os investimentos e o retorno para tudo o que tem sido aplicado no País.
A taxa de juros está no patamar mais baixo da história, mas há queixas do consumidor final de que essa baixa não se reflete nos financiamentos.
A Nissan tenta repassar o máximo que pode. Quando você pega hoje os juros que são aplicados para a compra de veículos, temos ofertas especiais, inclusive taxa zero. Mas, no final, o cliente sabe que a taxa de juros aplicada pelo mercado para qualquer tipo de financiamento vai depender muito do poder de compra de cada um e do valor de entrada. Quanto menor é o risco, mais barato fica esse valor.
O mercado enfrenta escassez de alguns insumos e matéria-prima. De que forma isso interfere nos negócios da Nissan?
Como toda a indústria, temos, sim, uma deficiência em relação ao potencial de volume de montagem de veículos e a capacidade dos nossos fornecedores, que também compram matéria-prima, de conseguir encontrar no mercado. Temos potencial de crescimento que estará limitado, sim, a um aumento de preço. Por isso que a gente tem visto a alta dos preços dos veículos. Uma parte é pela alta do dólar, outra, em razão do custo dos insumos. Mas acredito que esse problema de matéria-prima tende a se estabilizar no médio prazo, tanto nos fornecedores como nos custos das commodities, com base na nova demanda.
Qual a sua opinião sobre o fim das operações da Ford no Brasil? Outras montadoras podem seguir o caminho?
Cada empresa conhece sua situação e tem sua estratégia. O importante é reforçar que, para qualquer companhia, de qualquer setor, é fundamental ter políticas e regras claras, que possibilitem um planejamento mínimo de médio e longo prazo e que sejam capazes de nos dar competitividade para disputarmos do Brasil o mercado cada vez mais globalizado.
As montadoras entraram de vez no programa de aluguel por assinatura de carros. A Nissan planeja algo do tipo?
Estamos na fase final de implementação. Fizemos um balão de ensaio, um plano diferenciado de aluguel de veículo por um ano com os nossos empregados, dando a oportunidade de pegarem um carro novo zero quilômetro, pagando valor baixo, e de comprarem o automóvel no final. O resultado foi fantástico.
Será expandido?
É um mercado sem volta. Sem pensar numa concorrência direta com o que existe hoje e que é muito bem executado pelas grandes locadoras no País. Um exemplo é a parceria com a Movida para locação do Leaf (modelo 100% elétrico).
Qual a sua análise sobre o trabalho do governo e das montadoras na pandemia?
Houve uma tentativa de a gente receber algum tipo de suporte (temporário). Ficamos três meses com a planta parada. Nosso fluxo de caixa zerou. E a gente teve de ir atrás de recursos. Algumas ações, principalmente investimentos, tivemos de segurar. E o governo, acertadamente, conseguiu, por meio da Anfavea, postergar algumas medidas obrigatórias que deveríamos fazer frente agora no começo de 2021. Relacionadas à parte de segurança, como a luz de condução diurna. Essa sensibilidade do governo nos ajuda.
E qual é a importância da administração pública nesse contexto?
O governo tem uma parte importante no acordo que passa de longo prazo dentro de uma política para a indústria automobilística. Quer desenvolver a indústria automobilística? Então, quais são as regras? Como vai ser o jogo? E não mudar. Manter firme, independentemente de quem seja o governo. A indústria automotiva precisa ser uma política de desenvolvimento do País. Não do governo.
Setores vivem a expectativa da reforma tributária. E a Nissan?
Sou 100% a favor. Entendo que existe no Congresso também uma discussão da reforma administrativa. Uma não vai sem a outra. O governo tem de segurar as contas públicas, o seu gasto, não pode ultrapassar o teto estabelecido. Então, a reforma administrativa é fundamental. Mas a reforma tributária precisa vir primeiro.