Procuram-se líderes na crise
Uma cena, no mínimo, inusitada. Durante quase um ano, um jovem senhor aparentando quarenta e poucos anos, usando avental e uma touquinha branca, tirava o pedido de lanches, fritas e refrigerantes atrás do balcão de uma lanchonete do McDonald’s em Cotia, na Grande São Paulo. Quando não estava no atendimento, limpava o chão com o esfregão e até dava uma geral nos banheiros. A situação, na verdade, se travava de uma espécie de estágio intensivo. Aquele empregado dedicado era o executivo paulista Paulo Camargo, até então vice-presidente da Arcos Dorados, divisão brasileira da maior rede de fast-food do mundo.
Por ordem da matriz, ele estava infiltrado para se preparar para assumir a presidência da companhia, promoção que ocorreu três anos depois, em outubro de 2015. A ideia era que Camargo, ao sentir na pele o cotidiano de funções habitualmente exercidas por adolescentes em programas de primeiro emprego, conhecesse cada mínimo detalhe do funcionamento do McDonald’s, credenciando-o a fazer ajustes cirúrgicos, corte de custos e aumento da eficiência, quando houvesse necessidade.
“Aprendi a identificar todos os problemas da rede, dos menores aos maiores e, principalmente, a reduzir gastos desnecessários no momento apropriado”, afirma Camargo. Esse momento chegou. Graças à experiência adquirida no chão de fábrica, Camargo afirma estar bem preparado para conduzir o McDonald’s durante a mais grave crise econômica do Brasil em décadas – e um dos momentos mais delicados da história da empresa, vista por muitos como uma inimiga dos hábitos saudáveis de alimentação.
Aos 47 anos, o executivo está implementando uma série de medidas para garantir a sustentabilidade da rede de fast food nos próximos anos. As iniciativas vão desde mudanças no cardápio até a definição de um novo uniforme para funcionários, aquelas roupas que, em um passado não muito distante, ele mesmo vestiu. “Os clientes querem enxergar um novo McDonald’s, e isso passa por todos os departamentos e elementos visuais da rede”, afirma Camargo. “Um bom líder tem de estar atento às vontades dos consumidores e estamos fazendo isso.”
Ter um alto grau de conhecimento da empresa e uma visão ampla do negócio são atributos essenciais para os líderes em períodos de crise, segundo especialistas. A consultoria Talenses realizou, a pedido da DINHEIRO, um levantamento exclusivo com 110 executivos, entre eles CEOs, vice-presidentes e diretores. O objetivo foi identificar as qualidades que os gestores precisam ter em períodos de maré baixa e o que as maiores empresas do País buscam de seus talentos em momentos desafiadores, como o que vivemos atualmente.
Além da capacidade de gerenciar a companhia em um momento de recessão e pessimismo, o maior desafio para o líder neste ano será, segundo o estudo, o aumento da produtividade com o orçamento reduzido para investimentos. Em outras palavras, a ordem é fazer mais com menos. “Ninguém poderia imaginar, no início do ano passado, que 2016 seria tão complicado”, afirma Luiz Valente, diretor da Talenses. “Agora, sai na frente quem consegue melhorar a produtividade.” A arte de administrar uma empresa em tempos de recessão é comparável às estratégias de pilotos de corrida – se dá melhor quem é mais rápido nas curvas, e não quem acelera apenas nas retas.
A analogia pode parecer exagerada, mas é frequentemente utilizada pelo CEO do banco espanhol Santander no País, o carioca Sergio Rial, 55 anos. “Ayrton Senna dizia que se ganha uma corrida nas curvas”, diz o executivo. Nos últimos anos, Rial se especializou, na prática, em gestão de crises. Antes de assumir a presidência do Santander, em janeiro, promoveu a reestruturação de empresas em dificuldade, como o frigorífico Marfrig e uma de suas marcas mais populares, a Seara, vendida para a concorrente JBS.
À frente do Santander, Rial recebeu a missão de conduzir a instituição em um ambiente de forte desaceleração econômica, alta na inadimplência e retração no volume de empréstimos. Uma prova da reviravolta do mercado é o próprio balanço do banco. Embora tenha alcançado um lucro líquido recorde no ano passado, com R$ 6,6 bilhões, 13,2% a mais do que o registrado em 2014, no último trimestre houve uma queda de 5,9%. “A retração do nosso lucro não é nada mais do que uma curva em que vamos acelerar”, brincou Rial.
Apesar da comparação com o ídolo brasileiro da F-1, o plano do executivo é colocar o pé no freio, incorporando uma postura mais conservadora em sua gestão. Para evitar que a crise na economia contamine as finanças do banco, Rial está estabelecendo uma fórmula mais criteriosa de avaliação do perfil de cada correntista. “Vamos entender e educar mais o nosso cliente, trabalhar junto com ele e fazer negócios que sejam bons para todos”, diz Rial. “Precisamos ter foco e ser mais produtivos. Quem quiser abraçar o mundo em 2016 vai se dar mal.”
Aumentar a produtividade, na prática, é um desafio histórico para as empresas em operação no País. Na indústria, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que a queda de produtividade do brasileiro é observada desde 1996 e recua, em média, 0,2% ao ano, movimento que pode ser visto em todos os setores. Soma-se a isso a chegada das novas gerações no mercado corporativo, que modificaram as formas de liderar e gerir equipes, algo que muitos chefes ainda não absorveram.
“O comandante tem que mostrar, por meio de estratégias inovadoras e amplo diálogo em equipe, que tem total condições de comandar a companhia”, diz Felipe Andraus, diretor executivo da Page Executive, braço da Michael Page especializado em cargos de alto escalão. “Caso contrário, seus funcionários não irão se inspirar nele, o que desmotivará a equipe e comprometerá a produtividade.” O desafio de liderar na crise atinge todas as áreas da economia brasileira, inclusive as empresas de tecnologia.
Recrutado em setembro para turbinar o grupo brasileiro de comparação de preços Buscapé, o CEO Rodrigo Borer, 48, acredita que o segredo do sucesso das empresas na crise não está fora, mas dentro da empresa. “Quem não se aproximar todos os dias de seus funcionários não irá sobreviver”. Por essa razão, ele convoca semanalmente funcionários de todos os setores da empresa para reuniões de brainstorm e discussão de novas soluções. De acordo com o executivo, essas conversas são fundamentais para manter a roda da inovação girando dentro da companhia.
“Para nós, é um exemplo de que encontramos a solução para qualquer percalço dentro de casa, com nossos colaboradores”, diz ele. Os especialistas ouvidos pela DINHEIRO afirmam que os head hunters e as consultorias especializadas em recrutamento de altos executivos estão olhando com mais atenção para os jovens talentos – movimento contrário ao que ocorreu durante décadas, em que quanto maior a idade, maior o valor do passe. “Em ciclos de crise, idade não é mais preponderante para um líder, mas sim a atitude”, afirma Norberto Chadad, dono da consultoria Thomas Case & Associados, especializada em contratação de profissionais de alto escalão.
“É preciso entender os novos tempos, já que nem sempre o líder de ontem será bom para a empresa amanhã.” Um exemplo de empresa que decidiu rejuvenescer seus cargos de comando é a gigante francesa Accor. A operação da rede hoteleira na América do Sul, dona de um faturamento de R$ 2,2 bilhões, passou das mãos de Roland Bonadona, que havia completado 40 anos de carreira, para o francês Patrick Mendes, com 45 anos de idade. O executivo recebeu a missão de adequar a Accor aos novos tempos, em que sites de locação, como Airbnb, estão atraindo clientes historicamente fiéis às bandeiras do grupo, como Ibis e Sofitel.
“A crise nos estimulou a colocar em funcionamento uma gestão mais horizontal e com pensamentos mais ligados às novas gerações”, diz Mendes. “Agora, a média de idade dos diretores da Accor é de 45 anos, a mais baixa de todos os tempos.” De acordo com o CEO, a nova formação terá mais agilidade para aproveitar as janelas que a crise cria no setor, como imóveis mais baratos e, consequentemente, parceiros dispostos a investir neles. Com isso, a Accor quer dar início ao plano de crescer, nos próximos quatro anos, o que evoluiu nos últimos 40 anos.
“Contra a crise, vamos acelerar nossa expansão, atingindo 500 hotéis na América Latina até 2020, 80% deles no Brasil.” Saber diferenciar um autêntico líder de um simples gestor de custos não será uma missão difícil na crise. Em um contexto de deterioração econômica, onde se trabalha com cada vez menos recursos, apenas cortar gastos não garantirá a sobrevivência da empresa. Por isso, é consenso que a criatividade terá cada vez mais importância para um líder nos próximos anos.
“O verdadeiro líder é aquele que consegue enxergar o mesmo negócio sob vários ângulos”, diz Danilo Castro, diretor-executivo da Hiring, consultoria especializada em gestão de pessoas. “Ele precisa ter um olhar inovador, conseguir enxugar custos e saber se reinventar.” Essa foi a preocupação da Marcopolo, maior fabricante de carrocerias de ônibus do Brasil. Em um cenário desolador, com quedas no mercado interno chegando a 44,2% nos nove primeiros meses de 2015, a montadora gaúcha precisou repensar estratégias para estancar as perdas.
A criatividade para colocar os planos em prática, porém, teve de vir do exterior. A empresa foi buscar nos Estados Unidos o executivo Francisco Gomes Neto, que ocupava cargos de chefia da Mann Hummel, fabricante especializada em suplementos para a indústria. Seu último contato com o setor automotivo tinha sido apenas em 2000, quando ele dirigiu a divisão do Brasil da alemã Knorr-Bremse, de trens e caminhões. “O distanciamento foi fundamental para trazer um novo olhar ao negócio e pensar mais rápido em soluções”, diz Gomes Neto, que, aos 57 anos, se considera um conhecedor de crises.
“Estava nos Estados Unidos em 2008, sei me adaptar às condições do mercado.” Tal adaptação ficou clara na primeira medida tomada por Gomes Neto quando assumiu o posto, em agosto: deu continuidade à priorização do mercado externo. Habituado com as negociações em outros idiomas e aproveitando a valorização de 62,2% do dólar nos últimos doze meses, o CEO intensificou as vendas de seus ônibus para fora. O resultado foi visto logo no primeiro balanço sob o seu comando. As exportações da empresa somaram R$ 386,5 milhões no terceiro trimestre do ano passado (último dado disponível), um aumento de 72,4% em comparação ao mesmo período de 2014.
Atualmente, o mercado internacional representa 56% de sua receita. Para quem tem dinheiro em caixa, a crise pode representar oportunidades. Porém, este não é o caso das empresas brasileiras que, nos últimos anos, se viram obrigadas a vender o almoço para pagar o jantar. Não por acaso, executivos especializados em finanças têm sido cobiçados pelas grandes corporações para os cargos de comando. De acordo com o levantamento da Talenses, 53% dos entrevistados acreditam que os craques das finanças levam vantagem no momento da contratação. “Ter formação e experiência financeira vem se mostrando cada vez mais fundamental”, afirma Valente.
Um exemplo emblemático desse movimento é o da gestora de hospitais e planos de saúde Notredame Intermédica. No posto mais alto da companhia há dois anos, quando a crise começou a mostrar suas garras na economia, Irlau Machado, 49 anos, foi recrutado depois de ocupar os cargos de vice-presidente do Citibank na América Latina e também no Santander. “Cerca de 80% do nosso corpo diretivo tem algum tipo de conhecimento em finanças”, afirma Machado. E com razão. Apesar de a inflação brasileira ter ultrapassado a fronteira dos 10% ao ano, os custos do setor médico – parte deles atrelada ao dólar, como a compra de equipamentos e medicamentos importados – subiram mais de 18% no ano passado.
“Precisamos cortar custos onde podemos, e de maneira inteligente”, diz. “Se cortar demais, pode comprometer a qualidade. Se cortar pouco, pode afetar a saúde financeira da empresa. Não é fácil.” Por conta disso, Machado alterou todo o organograma, reforçando o time. Criou a divisão de integração, responsável pela aquisição e criação de sinergias de novas companhias, e colocou o diretor financeiro Anderlei Buzelli a cargo de garimpar oportunidades. Em poucos meses, foram duas empresas adquiridas no Estado de São Paulo: a Santamália Saúde, com forte atuação no Grande ABC, e o hospital Family, no município de Taboão da Serra.
“A expertise financeira ajuda muito na procura por sinergias”, diz Buzelli. “Conseguimos economizar até na compra de produtos do dia a dia, como esparadrapos.” Para completar o time financeiro, Daniel Levy, antigo vice-presidente de finanças da TAM, foi convocado para ser o novo CFO. Assim como a Notredame Intermédica enxerga espaço para aquisições e futuras sinergias, algumas empresas passam por mudanças na gestão por conta de novas culturas. A Motorola sabe muito bem disso. A empresa, que depois de ter anos dourados nas décadas de 1990 e 2000 com modelos tradicionais como o Star TAC e o V3, entre os mais vendidos da história, passou por maus bocados até 2012.
Naquele ano, foi comprada pela gigante Google, responsável pelo lançamento de celulares como o Moto G e Moto X, que se tornaram fenômenos de vendas. Para completar as mudanças, no fim de 2014 a chinesa Lenovo adquiriu a empresa. “Uma aquisição sempre pode causar problemas na continuidade do executivo”, afirma Chadad, da Thomas Case. “A gestão, nesses casos, tem de ser bem cuidadosa.” Essa, então, é a missão do executivo Sergio Buniac, 49 anos, que no fim de 2015 passou a responder por toda a área de celulares da Lenovo para a América Latina.
Há vinte anos dentro da companhia, o CEO conta com o dinheiro chinês para ultrapassar o primeiro momento turbulento pelo qual passa o mercado de smartphones no Brasil. Segundo estimativa da consultoria IDC, esse segmento encolheu 12,8% no ano passado. A Motorola cresceu 15% e ainda triplicou o número de funcionários de pesquisa e desenvolvimento para 450 pessoas. “Claro que estamos passando por um momento difícil, mas é necessário investir nesses momentos”, diz Buniac. “Na crise, se o bolo está menor, o segredo é buscar uma fatia maior dele.”
Por André Jankavski e Paula Bezerra, da IstoÉ Dinheiro.