Pandemia pressiona modelo de negócio das locadoras

Todos os meses de maio, à medida que as temperaturas sobem e milhares de turistas chegam a Barcelona, o aplicativo CarSocial, de compartilhamento de veículos, costuma ser bombardeado por uma enxurrada de pedidos. A startup, que permite a um dono de carro oferecer o próprio veículo para alugar na Espanha, normalmente teria uma média de 2,5 mil transações no mês, que marca o início de sua temporada de maior movimento.

Neste mês, eles se darão por satisfeitos se conseguirem 300. “Não temos visto nenhuma demanda, zero”, disse a fundadora e executiva-chefe Mar Alarón, confinada em seu apartamento em Barcelona há dois meses. Por ser uma startup e como os carros não são de sua propriedade, a empresa tem baixos custos operacionais.

Já no caso dos grandes grupos de locação de veículos, o panorama é ainda pior.

As medidas de confinamento pela crise do coronavírus em diversos países do mundo praticamente paralisaram as viagens internacionais e provocaram uma crise existencial entre as maiores locadoras de veículos do mundo. Nos Estados Unidos, a Hertz, respaldada por Carl Icahn, conseguiu por pouco evitar entrar em processo de recuperação judicial ao acertar o adiamento para 22 de maio de pagamentos que venciam em abril.

Sua principal rival de capital aberto, a Avis, registrou prejuízo de US$ 158 milhões no primeiro trimestre e já avisou que as vendas caíram 80% em abril e que queimou US$ 800 milhões do caixa entre abril e junho.

A Sixt, da Alemanha, conseguiu um crédito de € 1,6 bilhão, em parte financiado pelo banco de desenvolvimento estatal KfW, enquanto a Europcar, com sede em Paris, recorreu a seus bancos para conseguir um crédito de € 220 milhões, 90% garantido pelo Estado francês. “Houve queda em cada região em que operamos”, disse a executiva-chefe da Europcar, Caroline Parot. “Normalmente, ganhamos a maior parte de nosso lucro e a maior parte de nosso caixa entre abril e outubro. Com a Páscoa morta, era essencial conseguir mais liquidez para cobrir a crise.”

Empresas do setor têm colocado funcionários de licença ou demitido pessoal, vendido carros para reduzir custos e cortado todos os gastos não essenciais.

Líder no setor, o grupo americano Enterprise, de capital fechado, informou que se depara com “desafios significativos e sem precedentes” nesta crise.

Uma locadora descreveu o impacto de curto prazo como “maior do que o 11 de Setembro e a recessão de 2008 combinados”. Embora o setor como um todo esteja sob enorme pressão, a pandemia expôs uma profunda divisão entre os dois modelos de propriedade da frota existentes. A abordagem de “recompra” pelas montadoras, predominante na Europcar, por exemplo, consiste em que a locadora compre o veículo e depois o revenda à fabricante a preços e datas pré-determinados. Isso protege as locadoras de variações imprevistas no preço dos carros usados.

Na outra abordagem, adotada pela Hertz, as locadoras compram o carro e se encarregam da tarefa de revendê-lo posteriormente, o que é conhecido como modelo “de risco”. Essa estratégia depende da valorização constante dos valores residuais dos carros usados – uma situação que tem paralelos muitos parecidos com a bolha imobiliária dos EUA, que dependeu da alta constante dos preços até o “crash” na crise financeira de 2008.

Durante anos, as locadoras de capital aberto, por cautela, preferiram o modelo de recompra pelas montadoras. A Enterprise, contudo, optou pelo modelo “de risco”, usando sua escala e abrangência para vender os carros posteriormente. Seu sucesso levou executivos do setor a brincar dizendo que a Enterprise na verdade era mais uma concessionária de carros usados com um braço de locação de veículos do que o contrário.

Ainda assim, outros grupos de locação copiaram a Enterprise e começaram a comprar diretamente os carros, incentivados pela aparente facilidade de revender veículos quase novos e pela liberdade de não ter obrigações com as montadoras, embora isso os deixassem sem a segurança de ter um valor garantido de revenda. A porcentagem de carros de locadoras nos EUA comprados diretamente sem acordo pré-determinado de revenda às montadoras subiu de 58%, em 2015, para 79%, em 2019, segundo dados do banco de investimento Jefferies.

O setor rumou em direção ao modelo ‘de risco’, com a suposição de que não se veria o preço do carro usado despencando”, disse o analista Hamzah Mazari, do Jefferies.

Então, chegou o coronavírus. O vírus expôs as vulnerabilidades do modelo “de risco”, no qual os grupos normalmente mantêm os veículos em “títulos lastreados por ativos” (ABS, na sigla em inglês). Eles pagam uma depreciação a uma taxa fixa e juros pelo título. No fim do período, vendem os carros, liquidando o ABS.

Caso o preço dos carros se desvalorize mais do que o previsto, como ocorreu em abril, quando houve um declínio de 12% em comparação a março, as locadoras são obrigadas a alocar dinheiro como garantia adicional para o título. Embora as variações de preço dos carros sejam mensais, a garantia deve ser adicionada no fim de cada trimestre, de forma que as locadoras com alta exposição têm até junho para encontrar as reservas necessárias.

Projeta-se que a Avis terá uma conta de US$ 700 milhões, o que consumirá quase metade de sua liquidez de US$ 1,6 bilhão, de acordo com cálculos do Jefferies.

A Hertz, dona de 90% de seus carros sob o modelo “de risco” nos EUA, terá um possível pagamento de US$ 800 milhões, equivalente a quase toda sua liquidez de US$ 1 bilhão, de acordo o Jefferies.

Neste mês, a Avis reiterou que seu modelo, no qual deprecia o carro em 20% por ano, mais que o declínio médio previsto, lhe dá um escudo de proteção para suportar quedas grandes e repentinas nos preços dos veículos. A empresa segue “uma abordagem conservadora para os financiamentos de títulos lastreados por ativos”, disse o diretor de finanças da Avis, John North, a investidores em teleconferência.

A Hertz, nos documentos oficiais em que detalha os pagamentos a credores, informou que trabalha para “desenvolver uma estrutura e estratégia de financiamento que reflitam melhor o impacto econômico da pandemia global de covid-19 e os atuais requerimentos financeiros e operacionais da Hertz”.

Outra grande possível desvantagem para os grupos do modelo “de risco” é precisar vender os próprios carros, uma tarefa quase impossível com as concessionárias e as casas de leilão fechadas. Por outro lado, as que usam o modelo de “recompra”, como Europcar, poderão devolver os veículos quando os contratos acabarem.

Hoje, graças ao modelo de ‘recompra’ podemos diminuir a frota pesadamente”, disse Parot, da Europcar. Até junho, a empresa, que interrompeu as encomendas de novos veículos, terá reduzido sua frota em cerca de 30%. A empresa teria comprado 150 mil carros entre março e maio.

Estamos no começo do período de compras. Conseguimos adiar ou cancelar essas compras”, disse. O grupo deverá suspender todas as novas compras pelo menos até julho, dependendo da recuperação de seus mercados.

Embora seja esperada ainda neste verão europeu alguma recuperação das atividades no mercado de lazer, que movimenta metade do setor de locação, as locadoras não deverão ter uma retomada “até a próxima Páscoa, na melhor hipótese”, disse Parot.

Ainda assim, em alguns nichos a demanda vem subindo. “Em mercados onde as restrições de confinamento estão sendo levantadas, estamos vendo os primeiros sinais de melhora na demanda, o que nos deixa esperançosos por uma recuperação no início do terceiro trimestre”, disse o chefe da Avis, Joseph Ferraro, em teleconferência sobre resultados.

Os receios quanto ao uso de transporte público e a necessidade de transporte para os supermercados ou o trabalho, poderão levar a um aumento na demanda por veículos particulares.

Fonte: Valor Econômico

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