O ‘milagre’ por trás das vendas recordes do Jeep Renegade
Líder entre os SUVs compactos tem explorado o mercado PCD e de Uber para superar seus concorrentes
Não é raro um carro “micar” logo que foi lançado e virar o jogo tempos depois. Mas isso exige mudanças profundas e muitas vezes uma recolocação no mercado. Um caso emblemático é o do Gol, que só embalou cinco anos depois de chegar às lojas, mas bastante mudado em sua concepção original.
No entanto, é de se suspeitar quando um veículo passa a vender muito mais do que antes sem que tenha recebido alguma evolução. É o que tem acontecido com o Jeep Renegade.
O modelo que estreou uma nova categoria para a marca americana chegou ao Brasil em 2015 e teve uma boa aceitação, mas nada que sugerisse uma liderança inconteste no mercado. Tudo porque na mesma época a Honda lançou o HR-V, um utilitário esportivo com proposta bem diferente, mais urbana e versátil.
Mesmo mais caro em versões equivalentes, o Honda sobrou por muito tempo nesse segmento. Mas já há algum tempo fenômenos do mercado acabaram relegando HR-V para um estranho 4º lugar em vendas em 2019. Na ponta agora está o Renegade que até julho acumulava 40% a mais de emplacamentos que o jipinho japonês.
Mas, afinal, houve alguma mudança significativa em ambos para ratificar essa virada? Nada. Os dois receberam um leve facelift, ganharam alguns equipamentos, mas que não justificam essa mudança de humor entre os clientes.
Então, o que fez o Renegade virar o “queridinho” do público? A resposta envolve vários fatores e muitos deles não são exatamente positivos.
Meca das locadoras
A primeira explicação para o crescimento nos números do Renegade vem de uma fonte já bem manjada no Brasil, as vendas para locadoras. Trata-se de um recurso um tanto desesperador utilizado por montadoras quando estão com estoque alto. Essas empresas acabam comprando lotes imensos com descontos pesados, mas depois inundam o mercado de usados a ponto de baixar o valor desses veículos.
Normalmente, esse tipo de negócio envolvia carros populares, mas a crise econômica acabou empurrando os sedans compactos e SUVs para esse mesmo abismo. A razão chama-se “Uber” e seus concorrentes. Muitos brasileiros sem emprego formal têm buscado sustento como motoristas de aplicativos e a saída muitas vezes tem sido buscar esses veículos em locadoras como a Localiza, sediada em Belo Horizonte.
Não é à toa que parte dos SUVs tem hoje uma parcela significativa de suas vendas em Minas Gerais. O Duster, por exemplo, emplacou quase um terço no estado enquanto o EcoSport credita um quarto dos seus emplacamentos à Minas. O Renegade não fica muito atrás: 23% das suas vendas vêm do estado sede da FCA, sua fabricante. Nesse caso, no entanto, estamos falando de 8.750 carros até julho, quase o mesmo que o C4 Cactus vendeu no Brasil inteiro.
Para se ter uma ideia, modelos que não fazem uso desse expediente, têm uma participação bem menor em Minas. O HR-V, por exemplo, vendeu apenas 8% do seu total no estado.
PCD, a salvação
Nada, no entanto, fez tanta diferença para algumas marcas do que o mercado PCD. Os descontos concedidos para pessoas com algum tipo de deficiência ou restrição criaram uma espécie de mercado paralelo cujo desempenho é bastante diferente do restante das vendas.
Enquanto as vendas tradicionais minguam, os emplacamentos de versões PCD explodem. Praticamente todas as marcas que possuem veículos dedicados a se enquadrar nesses quesitos experimentam um crescimento em seus emplacamentos.
E adivinhe quem é o utilitário esportivo mais popular nas vendas diretas? Sim, ele mesmo, o Renegade. Nada menos que 72% dos seus emplacamentos em 2019 foram para esse segmento, entre frotistas e PCD. Depois dele estão o Peugeot 2008, com 70%, e o C4 Cactus, com 63%.
Na outra ponta, o SUV que menos depende das vendas diretas é o Tiggo 5X, com apenas 5%. Logo depois está justamente o ex-líder do segmento, o HR-V, com 8%.
Mundos diferentes
Dar atenção ao mercado de vendas diretas não é exatamente um “crime”, mas pode ser uma fatura que será cobrada das montadoras no futuro. Se o mercado PCD em tese não chega a afetar suas margens, afinal, o desconto vem da isenção de impostos, sua revenda é um problema para os donos.
A razão é que o proprietário com isenção só pode repassá-lo para outros portadores de deficiência ou doenças crônicas dentro de um prazo que varia de dois a quatro anos, dependendo do imposto. Caso contrário, é preciso recolher esses valores que não foram pagos. Ou seja, essas versões podem acabar prejudicando o modelo no mercado de usados.
Já as vendas para locadoras acabam por ampliar a desvalorização muitas vezes por conta de as locadoras, na hora de renovarem suas frotas, colocarem milhares de veículos no mercado com preços competitivos, prejudicando os proprietários que pagaram o valor cheio por eles.
Não se trata de uma regra, afinal existem outros fatores que influenciam o preço, porém, em uma pesquisa na Fipe com modelos PCD vendidos há um ano, o Renegade apresentou uma desvalorização de 7,5% contra 4,5% do HR-V mais emplacado.
Se você é um comprador pessoa física e que não tem direito a nenhum tipo de isenção e não pretende usar seu carro a trabalho, uma má notícia: você está recolhendo muito mais impostos que outros cidadãos. Infelizmente, há décadas os governos têm optado por conceder isenções e reduções para setores industriais ou nichos de mercado enquanto cobra alto do cidadão comum.
Seria mais justo que houvesse uma redução geral das alíquotas de forma que os preços fossem mais realistas e não obrigassem pessoas que queiram trabalhar com seus veículos a comprá-los de “atravessadores”. E que o público PCD tivesse isenção, mas que isso fosse possível sem que existissem versões específicas e muitas vezes depenadas desses modelos.
Com carros mais acessíveis, o mercado cresceria como um todo e evitaria distorções. E certamente nesse cenário os líderes do mercado não surgiriam por meio de estratégias questionáveis.