O estudo de R$ 275 mil que pode arruinar a Volkswagen
Tem viagens que começam com o objetivo de explorar o desconhecido, e outras com o de cumprir um dever profissional, mas a do pesquisador colombiano Francisco Posada e da equipe de engenheiros da West Virginia University se baseava em um propósito mais ambicioso: conhecer a verdade sobre as emissões de poluentes dos carros à diesel nos Estados Unidos.
A última fase da aventura em que a pesquisa se transformou aconteceu a mais de 100 km/h na rodovia interestadual 5, a única estrada do país que se estende da fronteira com o México até os limites com o Canadá. Há dois anos e meio, um Volkswagen Passat, com engenheiros da West Virginia University à bordo, percorreu grande parte da via da costa oeste dos EUA em uma expedição de quase 4.000 quilômetros de ida e volta entre Los Angeles e Seattle. De sul a norte dos Estados Unidos. No porta-malas viajava um passageiro mudo: o PEMS, um aparelho conectado ao tubo de escape capaz de registrar as emissões de poluentes do veículo enquanto circula, sem necessidade de estar no banco de testes de um laboratório.
A rota, à beira do oceano Pacífico, fazia parte de um estudo para descobrir se as emissões de poluentes de três carros à diesel estavam de acordo com a lei: o citado Passat, um Volkswagen Jetta e um BMW X5. Durante as 39 horas e 31 minutos que dedicaram a realizar o percurso a uma velocidade média de quase 101 km/h, os engenheiros estavam longe de imaginar que avançavam rumo a uma descoberta que mudaria a indústria do automóvel: a fraude dos motores manipulados pela Volkswagen. A maior da história do setor.
Os engenheiros precisaram parar para reabastecer o carro seis vezes para completar a viagem, sempre em postos de gasolina Shell dos três estados pelos quais passaram: Califórnia, Oregon e Washington. Dias antes, atravessaram Los Angeles, San Diego e San Francisco, e as zonas rurais limítrofes, para estudar as emissões em distintas condições de direção e velocidade. Acompanhando de perto o movimento dos carros estava o colombiano Francisco Posada, engenheiro do International Council on Clean Transportation (ICCT), a organização que solicitou a realização do estudo por parte da West Virginia University.
A associação, sem fins lucrativos e financiada por empresas como Hewlett-Packard (HP), pôs 70.000 dólares sobre a mesa (cerca de 275.000 reais) para saber se os veículos à diesel cumpriam os critérios de emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) nos EUA, seguindo uma pista europeia: o Joint Research Centre da Comissão Europeia havia publicado um relatório em 2011 que alertava que os níveis de emissões dos carros em situações reais de uso excediam “substancialmente” os dados obtidos em laboratório.
“Despertou a curiosidade daqui. O dado dos veículos à diesel na Europa não era muito encorajador e queríamos ver o desempenho dos norte-americanos”, explica Francisco Posada. Nascido em Cali há 38 anos, o engenheiro mecânico formado pela Universidad del Valle, de Cali, resolveu se mudar para os Estados Unidos, há dez anos, para fazer um doutorado na West Virginia University, a mesma à qual pediram o estudo.
E colocar o projeto em ação não foi fácil. Os recursos eram limitados e, embora pareça estranho em uma sociedade acostumada ao diesel como a europeia, nos EUA, só 3% dos carros usam esse combustível, e encontrar um carro que funcionasse com diesel foi complicado: “Passamos poucas e boas”, lembra Posada, que falou com o EL PAÍS por telefone da sede da ICCT em Washington DC.
Após contatar, sem sucesso, agências de aluguel, ele mesmo postou em seu perfil no Facebook um aviso: “Buscamos um veículo à diesel para realizar uns testes, interessados em alugá-lo entrem em contato comigo”. Ele também deixou outra mensagem semelhante em um jornal local de Los Angeles, que a publicou em suas páginas, sem saber que era o germe de uma história que seria a principal manchete no mundo inteiro durante semanas. E alguém entrou em contato com Posada. Assim, em troca de uma gratificação econômica e o equivalente a dois reais por milha percorrida, conseguiram o Volkswagen Passat, que, com o PEMS acoplado ao tubo de escape, partiria rumo a Seattle em busca de respostas, mas sem suspeitar de que estava coletando dados que mudariam o futuro de uma das maiores empresas da Alemanha e a forma como as autoridades europeias e norte-americanas medem as emissões de poluentes dos automóveis.
Uma vez em posse dos três carros, modelos de 2012 e 2013, aos que não foi possível acrescentar um Mercedes por falta de orçamento, o ICCT pediu ao organismo estatal que mede a qualidade do ar na Califórnia, o CARB, que se encarregasse de fazer as provas de laboratório enquanto o ICCT e a West Virginia State University faziam os testes em situações reais de uso.
A comparação entre ambos os resultados indicaria se as emissões de NOx eram tão diferentes nos EUA assim como na Europa, segundo a advertência do Joint Research Centre. Em junho de 2013, quando a coleta de dados terminou, começou a fase de análise. Quase um ano depois, o ICCT apresentou o resultado da pesquisa em um simpósio e alertou à EPA: as emissões de NOx no Jetta superam o permitido em até 35 vezes, no Passat em até 20 vezes, e se mantêm dentro dos limites no BMW.
O relatório, de 133 páginas, descreve detalhadamente toda a pesquisa. “Nós não detectamos o software, medimos no laboratório e na rua e comparamos. A diferença era gigantesca. Alertamos à EPA e eles fizeram a investigação”, explica Posada. Uma vez que a autoridade meio ambiental norte-americana confirmou os dados, entrou em contato com a Volkswagen para avisar que estava superando os limites, sem que, por enquanto, se falasse sobre a existência de um dispositivo ilegal. Essa relação se prolongou por alguns meses, durante os quais a empresa realizou correções que, no final, foram insuficientes para cumprir as normas.
No dia 18 de setembro, a EPA tornou pública a acusação: “A Volkswagen violou o Clean Air Act”, disse por meio de um comunicado. “Utilizou, supostamente, um software para manipular as provas de emissões em laboratório”, acrescentava, com certa cautela, utilizando ainda a palavra ‘supostamente’, mas estabelecendo em 482.000 o número de veículos com o dispositivo instalado nos Estados Unidos, desde 2008.
Horas depois, a Volkswagen reconheceu o engano em escala global: 11 milhões de carros estavam enganando as autoridades com suas emissões. O presidente e CEO da Volkswagen para a América, Michael Horn, reagiu utilizando uma expressão gráfica para deixar claro o estado de ânimo dos diretores perante a magnitude do problema: “Fizemos uma enorme cagada”.
A viagem iniciada em Los Angeles, dois anos atrás, tinha acabado para o ICCT e o sabor que deixou, apesar das felicitações por revelar o lado oculto de uma multinacional renomada, é agridoce. “É muito triste pensar nos engenheiros. Gente que trabalha ali e que não está envolvida no engano, ou nos consumidores que compraram os carros pensando que eram limpos”.
O escritor beatnik Jack Kerouac, que percorreu, intensamente, as estradas californianas pelas quais circularam os pesquisadores, dizia que “independentemente de como seja a viagem, dos atalhos que se tomem, do cumprimento ou não das expectativas, sempre se acaba aprendendo algo”.
Quando os engenheiros desligaram os motores, 4.000 quilômetros depois, e os resultados falaram, os números superaram todas as expectativas. Então, a aprendizagem que Kerouac encontrava em todas as viagens se transferiu dos engenheiros que pisavam no acelerador aos que fabricaram o carro. A Volkswagen aprendeu que todas as fraudes tem um custo, e evitou a tentação de negar o erro. Uma lição que já custou bilhões à empresa alemã.
Por Álvaro Sánchez, Do El País.